out 122011
 

Gnosticismo

O maior perigo para a Igreja nos primeiros séculos de sua História, de fato, consistiu numa subtil e venenosa heresia chamada Gnosticismo. Gnose é uma palavra grega que significa conhecimento, este pretende negar a Revelação divina que é o fato de Deus se dar a conhecer às criaturas humanas e lhes revelar seus eternos desígnios de salvação. A Igreja, como guardiã da Revelação, é também a guardiã e mestra do verdadeiro conhecimento a respeito de Deus. Santo Irineu ensinava que a verdadeira gnose é a doutrina dos Apóstolos (Santo Irineu, Contra as heresias, IV, 33,8). A Religião Cristã, por outro lado, é religião de mistério, e nela há uma dimensão infinita da verdade divina que não é alcançável pela inteligência humana, mas ante à qual, a razão deve se inclinar reverente e submissa. Entretanto, em todos os tempos, houve espíritos insatisfeitos ante essa contingência humana nos quais fervia o desejo de perscrutar, com seus meros recursos de inteligência, horizontes que só a Revelação nos pode descortinar.

Santo Irineu de Lyon

Santo Irineu de Lyon

Deste modo também em todos os tempos, a posse de pretensos conhecimentos secretos, a respeito da origem do mundo e da vida, do bem e do mal, revelados apenas a iniciados, cativou certos espíritos. O gnosticismo tem nisso sua origem.

Com existência muita antiga — há quem diga que ela se perde na noite dos tempos — o gnosticismo permanece, ele mesmo, um mistério. Pode-se, em todo caso, distinguir uma gnose pagã, manifestada no Egito, na Índia, na Grécia na Pérsia, e em muitos outros lugares, de uma gnose judaica e de outra “cristã”, ou seja, impregnações do gnosticismo, no judaísmo e no cristianismo.

O Gnosticismo é uma doutrina extremamente complexa, imprecisa, confusa, e nem sequer se pode dizer que é uma corrente doutrinária. São, na verdade, muitas correntes, adaptadas aos mais diversos tipos de psicologias, com diferentes graus de segredo. Pode-se, entretanto, discernir nelas algumas linhas gerais.

O que sobretudo move os gnósticos é a preocupação de explicar a origem do mal. Se Deus é bom e só pode criar coisas boas, como explicar o aparecimento de seres  imperfeitos e do mal, sobretudo do mal moral? Recusando eles os divinos ensinamentos sobre a criação e o pecado, engendram fantasiosas e contraditórias explicações: O Deus único e perfeito é na origem um Pan (tudo), posto num estado de perfeita harmonia e felicidade. Em determinado momento, deste tudo, destacou-se uma partícula, que tomando consciência de sua individualidade, se afirmou como um princípio do mal, e determinou uma explosão, neste tudo divino, provindo daí o que nós chamamos Criação. Tal explosão propiciou a existência de seres diferenciados e desiguais, resultando a concepção de que, não só a criação é um mal, mas sobretudo é má a existência de seres individuais e desiguais. E a desigualdade, por ser a mais expressiva manifestação da diferenciação, se afigura aos gnósticos como um mal sumamente rejeitável. Os seres individuais, que teriam resultado desta fragmentação do “deus”, são denominados eons, e foram aprisionados à matéria, produto do “deus mau”. Razão pela qual os gnósticos tem a matéria —  e portanto o corpo humano —,  em oposição ao espírito, como essencialmente má.

Temos, deste modo, a concepção gnóstica chamada dualismo, ou seja a existência de dois deuses: um “mau” outro “bom”. Esses dois deuses estariam em oposição, e a vitória do “bom” consistiria em alcançar — pelo desprezo crescente das coisas inferiores, especialmente das ligadas à matéria — a aniquilação dos condicionamentos materiais, das características pessoais e até das próprias individualidades, para restabelecer o “Pleroma” (a unidade inicial). Isso se faria levando os seres “hilicos” (dominados pela matéria), a ascenderem à condição de “psíquicos” (que estão em luta com os seres inferiores e com a matéria); e estes últimos chegarem à condição de “gnósticos” perfeitos” ou “puros”, (que teriam aniquilado em si tudo o que é inferior e que os diferencia dos outros) alcançando assim a condição de “salvos”, prontos para se reintegrarem no “tudo” primitivo, ou seja, reconstituírem o Pleroma. O “Tudo” o “Pleroma”, para o qual se caminharia por uma ascese de aniquilação da própria individualidade, vem a ser também, logicamente, um “nada”, um abismo eterno, contradição na qual não se pode deixar de discernir o sinal “digital” do “pai da mentira”. 

Como foi dito acima, na ordem concreta, a gnose dissolvia essa “tintura mãe” em muitos coloridos e muitos matizes diversos, e se beneficiava da atração natural que o espírito humano tem pelos conhecimentos secretos, para comunicá-la gradualmente a seus neófitos.

O contato de tais doutrinas com o Evangelho suscitou o gnosticismo “cristão”, ou seja uma concepção gnóstica do cristianismo. Assim, o deus mau vem a ser o Deus do Antigo Testamento, criador e justiceiro, que diferencia, discrimina,  premiando uns e punindo outros, e que subjugou o “deus” bom. Em revide uma emanação deste “deus” bom, o demiurgo, se impôs, e veio pregar o perdão, a união, a igualdade , a fraternidade, etc. Este demiurgo seria, para eles, Nosso Senhor Jesus Cristo, que teria vindo realizar obra oposta ao Deus do Antigo Testamento.

As sutilezas e camuflagens com que tais doutrinas eram apresentadas fizeram com que elas se transformassem, como foi dito, no maior perigo para a Igreja de Deus naqueles tempos.

Marcionismo e Maniqueísmo

Em contato com gnósticos sírios, um armeiro de nome Marcião, a quem São Policarpo qualificava de primogênito de Satanás — excomungado pelo próprio pai que era bispo — pôs-se a difundir uma doutrina impregnada de ideias gnósticas, que veio a chamar-se Marcionismo. Recusava todo o Antigo Testamento e do novo aceitava apenas alguns livros nos quais julgava encontrar apoio para suas doutrinas. Foi esta, precisamente, a mais perigosa heresia que o Cristianismo enfrentou naqueles primeiros tempos. Contra ela se levantou a invicta pena de São Justino, e mais tarde a brilhante ciência e erudição de Santo Irineu e Tertuliano, grande autor latino. Contido mas não morto, o marcionismo renasce no IV século com Manés, tomando por isso o nome de Maniqueísmo, chegando a colher em suas malhas, por algum tempo, aquele que veio a ser seu brilhante vencedor: Santo Agostinho. Mesmo vencido pela lógica e pela dialética desses grandes doutores, o gnosticismo marcionita, ressurgirá  peçonhento, no século XIII, com os cátaros (puros), como veremos mais adiante.

out 052011
 

Milenarismo e Montanismo

Ensaio do Pe. José Arnóbio Glavan, EP

Houve, na primitiva Igreja, uma piedosa concepção sobre a segunda vinda gloriosa de Jesus Cristo, mas falseada pelo exagero, porque se a considerava iminente. Tal idéia, mais tarde, levou alguns a interpretações distorcidas de textos de São Paulo e de São João, especialmente do Apocalipse, fazendo-os imaginar uma próxima volta de Cristo para dar início a um reino terreno de paz, harmonia e delícias, que deveria durar mil anos. É o chamado Milenarismo. Afim com tais ideias, aparecem também doutrinas a respeito de uma era do Espírito Santo, na qual as comunidades cristãs, e mesmo os indivíduos enquanto tais, seriam agraciados por uma manifestação constante do Espírito Santo e governados diretamente pelo Espírito, de maneira que poderiam prescindir da organização e disciplina  eclesiásticas e do Magistério da Igreja. Surgia assim a primeira heresia —  ou quase heresia pois não se tratava propriamente da afirmação de uma falsa doutrina mas de exageros e fanatismos.

Basílica de São Pedro

Basílica de São Pedro

Pelo fim do segundo século, Montano —  sacerdote pagão originário da Frígia, e convertido ao cristianismo — pretendia ser o único depositário dos carismas do Espírito Santo — que floresceram no início da pregação apostólica, mas que vinham se tornando cada vez mais raros — especialmente do dom da profecia. Acompanhado por duas mulheres, Maximila e Priscila,  tão visionárias e fanáticas quanto ele, que tinham abandonado os maridos para segui-lo, lançou-se à propagação de suas doutrinas. Tal heresia se espalhou muito, sobretudo no Oriente e foi vigorosamente combatida pelos Padres e apologetas. Persistiu ainda  em alguns grupos de fanáticos até o século IV, quando foi condenada pelo Papa São Zeferino (199-217). Ressurgiu, entretanto, com  roupagens novas, séculos mais tarde em plena Idade Média, com  Joaquim de Fiore (1130-1202) e seus seguidores, como veremos oportunamente.

set 172011
 

Os Padres da Igreja e o combate às heresias

Ensaio da História da Igreja do Pe. José Glavan, EP

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Primeira comunhão de São Jerônimo, um dos padres da Igreja do ocidente, por Botticelli

Do período subapostólico (fins do primeiro século até primeira metade do segundo), até o VI século —  época denominada patrística ou dos Santos Padres — a Igreja foi servida por homens insignes em santidade, sabedoria ciência e ardor apostólico que, valorosamente a defenderam contra os ataques dos inimigos da fé, e das ameaças de divisões produzidas pelas heresias — a palavra grega haéresis indica, precisamente, ruptura ou divisão. Diligentemente eles recolheram na memória profunda da Igreja os tesouros do ensino oral de Jesus Cristo, transmitido pelos Apóstolos, e vigorosamente levantaram os fundamentos do maravilhoso edifício da espiritualidade, da exegese e da teologia. São eles, por este motivo, denominados Padres ou Pais da Igreja.

Foram estes também, em geral, grandes apologetas, (defensores da fé) que se distinguiram por sua exímia ortodoxia (reta doutrina) e santidade de vida. Houve também escritores de grande valor, que se destacaram pela brilhante defesa da liberdade da Igreja ou de verdades fundamentais de fé, mas que num ou noutro ponto se desviaram da reta doutrina. Não cabe propriamente a esses a designação de Padres, mas simplesmente a de apologetas. Entre eles estão Orígenes e Tertuliano.

Já no período apostólico, em que os Apóstolos viviam e agiam, falsificadores da verdadeira doutrina (cf. 2Cor 2, 17) se introduziram no meio de rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas as tentativas de se desfigurar a mensagem evangélica aos neo-convertidos provenientes da gentilidade pela imposição de costumes e ritos do judaísmo — que tinham perdido seu sentido e sua vigência —  encontraram a vigorosa reação dos apóstolos reunidos no Concílio de Jerusalém (At 15, 4-35). Posteriormente, outras falsas doutrinas continuaram a ameaçar a jovem Igreja de Cristo, nas épocas que se seguiram.

No período subapostólico — que conheceu as testemunhas diretas daqueles que ouviram a pregação evangélica diretamente dos lábios de Jesus Cristo — e durante o transcorrer do segundo século, com efeito, novas heresias despontaram. Encontraram elas, entretanto, a fé o zelo e o amor a ortodoxia (verdade) daqueles homens valorosos, conhecidos como Padres Apostólicos, que souberam defender, valentemente, a verdadeira fé: apostólicos porque receberam o Evangelho de Cristo diretamente dos Apóstolos, e deles se poderia dizer com Santo Irineu: tinham ainda a voz dos apóstolos nos ouvidos e os seus exemplos diante dos olhos. Foram muitos dentre eles notáveis apologetas, pois se dedicavam especialmente à apologia (defesa) da  ortodoxia. Muitos deles, como São Justino Mártir, Santo Inácio de Antioquia e Santo Apolinário, discípulo este de São João Evangelista e seu sucessor na sede episcopal de Esmirna, selaram com o sangue seu testemunho de fé.