nov 112011
 

Lucretius, De rerum natura I.1-28 – Hino à Vênus

Marcos Eduardo Melo dos Santos

O texto do autor romano Lucrécio com que abrimos a seção de clássicos no Praecones Latine é cheio de surpresas. Com genialidade ou incoerência este texto engana o leitor inexperiente. Segundo os estudiosos que analisam este trecho da obra De Rerum Natura do filósofo latino Titus Lucretius Caro (94 a. C. a 50 a. C.), o poema sobre a natureza das coisas expõe a filosofia epicurista como a chave que poderia desvendar os segredos do universo e garantir a felicidade humana. O poema propõe libertar os romanos da crença em deuses através do conhecimento da filosofia epicurista. É um poema que defende o ateísmo. Embora o poema contenha hinos a deuses pagãos, Lucrécio tenta justamente negar a existência de deus atribuindo a criação do Universo e a harmonia do cosmos a uma espécie de força espiritual superior que se identifica  com a própria ordem natural das coisas. Por este lado o poema poderia ser chamado de naturalista. Por que Lucrécio uso deste artifício literário? Queira ele fugir das perseguições daqueles que defendiam a religião de estado do Império? Queria ele mostrar sua genialidade? Hesitam na resposta os especialista. Deixemos que o leitor conclua.

ArvoresOutono_Frace_Franca_Grand Canyon du VerdonMundovegetalplantasUm esclarecimento que me parece importante. Ele usa a imagem de Vênus não para evocar a presença da deusa ou fazer alusão ao instinto procriativo do homem, mas apenas para mostrar que a natureza é a mãe do universo e geradora da vida, e Vênus bem poderia representar para Lucrécio este papel: o da “mãe natureza”.

Claro que para nós católicos a doutrina epicurista se distancia da Fé Cristã pela qual acreditamos que a origem e a manunteção do cosmos se deve a Deus. Por mais que o poema seja pagão e epicurista, nele encontramos alguns atributos divinos que os antigos latinos chegaram a ver através da razão natural. O hino à Venus bem poderia louvar, com poucas adaptações, a Deus e a Nossa Senhora. Nestes versos vemos como Deus se revela aos pagãos através de suas obras como outrora o Apóstolo São Paulo explicou no primeiro capítulo de sua carta dirigida aos romanos. Neste hino se vê o desejo de Deus, do conhecimento do Criador, numa alma que não tem a Revelação; que não conheceu a Jesus e nem o ensinamento dos Patriarcas e Profetas do Antigo Testamento. É um poema contraditório, mas genial, que revela a profunda incoerência da alma pagã. É um poema ateu que fala de Deus, de alguém que tenta negar a existência da divindade, mas que relega à humanidade, querendo ou não,  belos versos sobre a grandeza divina. É o grito da alma pagã em busca do Deus desconhecido. Acompanhemos os versos latinos com a tradução de Agostinho da Silva.

Aeneadum genetrix, hominum divomque voluptas, alma Venus, caeli subter labentia signa quae mare navigerum, quae terras frugiferentis concelebras, per te quoniam genus omne animantum concipitur visitque exortum lumina solis: te, dea, te fugiunt venti, te nubila caeli adventumque tuum, tibi suavis daedala tellus summittit flores, tibi rident aequora ponti placatumque nitet diffuso lumine caelum. Ó mãe dos Enéadas, prazer dos homens e dos deuses, ó Vênus criadora, que por sob os astros errantes povoas o navegado mar e as terras férteis em searas, por teu intermédio se concebe todo o gênero de seres vivos e, nascendo, contempla a luz do sol: por isso de ti fogem os ventos, ó deusa; de ti, mal tu chegas, se afastam as nuvens do céu; e a ti oferece a terra diligente as suaves flores, para ti sorriem os plainos do mar e o céu em paz resplandece inundado de luz.
Nam simul ac species patefactast verna diei et reserata viget genitabilis aura favoni, aëriae primum volucris te, diva, tuumque significant initum perculsae corda tua vi.  Inde ferae pecudes persultant pabula laeta et rapidos tranant amnis: Ita capta lepore te sequitur cupide quo quamque inducere pergis. Denique per maria ac montis fluviosque rapacis frondiferasque domos avium camposque virentis omnibus incutiens blandum per pectora amorem efficis ut cupide generatim saecla propagent. Apenas reaparece o aspecto primaveril dos dias e o sopro criador do Favônio, já livre, ganha forças, primeiro te celebram e à tua vinda, ó deusa, as aves do ar, pela tua força abaladas no mais íntimo do peito; depois, os animais bravios e os rebanhos saltam pelos ledos pastos e atravessam a nado as rápidas correntes: todos, possessos do teu encanto e desejo, te seguem, aonde tu os queiras levar. Finalmente, pelos mares e pelos montes e pelos rios impetuosos, e pelos frondosos lares das aves, e pelos campos virentes, a todos incutindo no peito o brando amor, tu consegues que desejem propagar-se no tempo, por meio da geração.
Quae quoniam rerum naturam sola gubernas nec sine te quicquam dias in luminis oras exoritur neque fit laetum neque amabile quicquam, te sociam studeo scribendis versibus esse, quos ego de rerum natura pangere conor Memmiadae nostro, quem tu, dea, tempore in omni omnibus ornatum voluisti excellere rebus.  quo magis aeternum da dictis, diva, leporem. Visto que sozinha vais governando a natureza e que, sem ti, nada surge nas divinas margens da luz e nada se faz de amável e alegre, eu te procuro, ó deusa, para que me ajudes a escrever o poema que, sobre a natureza das coisas, tento compor para o nosso Mêmio, a quem tu, ó deusa, sempre quiseste conceder todas as qualidades, para que excedesse aos outros. Dá pois a meus versos, ó Vênus divina, teu perpétuo encanto.

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