ago 142012
 

Continuamos nosso ensaio de História da Igreja escrita pelo Pe. José Glavan, EP.

Jesus perdoa a incredulidade de São Tomé e a negação de São Pedro, exemplos do perdão de Cristo

Jesus ressuscitado perdoa a incredulidade de São Tomé e a negação de São Pedro, exemplos do perdão de Cristo Redentor

Outra grande perturbação sacudiu a África cristã no incício do século IV. Sob a perseguição de Diocleciano (244-311) as comunidades africanas não foram as que deram maior exemplo de heroísmo. Ocorreu com freqüência que livros sagrados e vasos litúrgicos eram entregues aos pagãos, como estes o exigiam, sob ameaça de torturas ou morte. Tal gesto era considerado sinal da apostasia e negação da fé.

Passado o perigo, muitos oportunistas procuravam se eximir das culpas lançando sobre outros, a acusação de apóstatas e traidores. Deste modo formou-se um partido de radicais e violentos que se punham a condenar a atitude compassiva de muitos bispos. As pessoas mais visadas foram o primaz de Cartago Mensúrio e seu colega Segundo, bispo da Numídia, acusados de condescendência para com os apóstatas.

A Mensúrio, morto em 311, sucedeu seu íntimo colaborador, Ceciliano, logo acusado de cumplicidade com seu antecessor, atraindo assim o ódio do partido dos  rigoristas. 

Disso aproveitou-se um homem extremamente ambicioso, inteligente e hábil manipulador político, natural da Numídia, chamado Donato. De início manejava, por trás, os revoltosos até colocar-se, ele próprio, a frente do cisma.

Cisma sim porque até então era apenas uma ruptura com a autoridade e a disciplina da Igreja na África. Mas Donato tinha outras pretensões pois bem maiores eram suas ambições. Desejava ele constituir uma Igreja africana independente, tendo a ele, naturalmente, como fundador. Percebendo a vacuidade do cisma — que se alimentava  unicamente de calúnias e intrigas —  excogitou dar-lhe bases doutrinárias, e assim firmar definitivamente o seu partido.

Como o ponto de partida do cisma tinha sido intransigência para com os lapsi, Donato revolveu criar, a esse propósito, uma nova teologia, afirmando que a Igreja é constituída unicamente pelos justos, com a exclusão dos pecadores. Sustentava ainda que os pecadores, lapsi ou os traditores (traidores), deveriam ser submetidos a novo batismo. Pelo mesmo motivo, negavam a validade dos sacramentos ministrados por sacerdotes considerados pecadores. Negavam assim, frontalmente, todas as maravilhosas lições de misericórdia deixadas Nosso Senhor Jesus Cristo.

Agora não era mais simplesmente cisma, mas também heresia, pois à ruptura com a unidade disciplinar da Igreja somava-se a ruptura doutrinária. E assim, com este cisma-heresia, em plena ascensão, chegamos ao ano 313, em que Constantino promulga o Edito de Milão dando liberdade à Igreja.

Os hereges, astutamente, enviam petição à Constantinopla solicitando a intervenção do imperador. Cristão recentemente convertido, Constantino, não se sentindo em condições de dirimir questões doutrinárias, sem desconfiar o quanto exacerbaria os donatistas, toma a única medida sensata nesta matéria: entrega a questão nas mãos do papa Melcíades.

Reuniu-se então um concílio em Roma, em 2 de outubro de 313, ao qual tomaram parte também bispos africanos partidários de Donato. As razões apresentadas pelos hereges foram logo e facilmente desmontadas e, por unanimidade, Ceciliano foi confirmado em sua sede primacial. Um novo concílio foi reunido em Arles, no ano seguinte, e nele expressamente condenada a prática do “rebatismo”. Roma assim havia se pronunciado, mas os hereges não se submeteram. Donato e seus partidários continuaram a agitar a África cristã.

Mas a polêmica donatista não se encerra nesse episódio.

(Continua num próximo post)

nov 212011
 

Pe. José Arnóbio Glavan, EP

As Catacumbas

Ao longo dos dois séculos e meio em que a Igreja sofreu sucessivas perseguições sangrentas, sentiu ela a necessidade de se esconder — sobretudo em Roma onde era mais diretamente visada — para poder continuar sua vida: celebrar os Santos Mistérios, conservar sua unidade, sepultar seus mortos —  especialmente os mártires cujos corpos se lograva resgatar — e acolher os novos cristãos.

aguia romana_aquila_eagle_arend_Adler_Aigle_romain_Romanische_RomaHabitualmente o fazia nas famosas catacumbas, locais subterrâneos  usados como cemitérios pelos antigos romanos, e que consistiam em amplas galerias com vários andares, interligados por verdadeiros labirintos, fato que vinha dificultar as perseguições. Entre elas destacam-se a famosa catacumba de São Calixto,  e as de Santa Priscila e de  Santa Domitila. As catacumbas são hoje em dia — juntamente com o Circo Máximo onde os cristãos eram martirizados — , locais de vivo interesse dos peregrinos que vão a Roma, e permanecem testemunhas eloquentes daqueles atribulados, heróicos e gloriosos tempos.

A unidade do Império sob Constantino

Em nossa trajetória histórica chegamos aos tempos de Diocleciano e de Constantino. O primeiro, como vimos, realizou uma reforma política e administrativa no Império, estabelecendo quatro imperadores: dois Augustos e dois Césares. Entretanto tal disposição não perdurou.

Com Constantino, seu sucessor, depois de muitos entrechoques políticos e militares, o Império viu-se governado por dois imperadores simplesmente: Constantino no Ocidente e Licínio no Oriente. Este último, entretanto, assumiu uma conduta contrária a de Constantino, hostilizando os cristãos, e ambos entraram em guerra. Constantino saiu vitorioso deste embate e tornou-se o único imperador: Totius orbis Imperator (Imperador de toda a Terra), foi o título que então levou.

Estava assim o Império Romano novamente unificado, e uma das principais medidas de Constantino foi, para se proteger das turbulências políticas de Roma,  transferir a capital do Império para Bizanço cujo nome mudou para Constantinopla, que em grego significa, cidade de Constantino.

Tal unidade porém também não se manteve. A necessidade da divisão se impunha pela vastidão do território sob poder dos Césares, e veio ela novamente a se restabelecer após o governo de Teodósio, permanecendo, como veremos a seguir, até a queda do Império Romano do Ocidente. O do Oriente, porém, perdurou por mais mil anos aproximadamente, vindo a cair somente com a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453.

O batismo de Constantino

Imperador Constantino e Santa Helena sua mãe, França

Após a famosa batalha da Ponte Mílvia, Constantino parece ter-se mantido sob influência da Igreja mas, surpreendentemente, não se fez batizar. Recebeu o santo batismo somente na hora da morte. O fato, que causa perplexidade e estranheza aos historiadores, se explica  pelo seguinte motivo: naqueles primeiros tempos da vida da Igreja, em que a exegese (ciência da interpretação da Sagrada Escritura) e a teologia (ciência da doutrina cristã), estavam apenas começando — impulsionadas sábia e corajosamente pelos Padres, e orientadas pelo Magistério da Igreja assistido pelo Espírito Santo — havia aspectos desta doutrina que ainda não estavam inteiramente claros. Um deles era justamente a respeito do sacramento da Penitência e das condições e amplitude do perdão concedido por Deus aos pecados graves atuais, após o batismo. Com efeito, era concepção corrente nesta época que os pecados graves cometidos após o batismo muito dificilmente seriam perdoados. E quando a Igreja concedia o perdão o fazia somente após anos de penitência.

Havia inclusive quem entendesse que tais pecados não tinham perdão a não ser, em certas condições, na hora da morte. Pelo contrário a convicção de que o batismo, recebido com as devidas disposições, apaga completamente todos os pecados, era uma verdade de fé compreendida e aceita em todos os tempos.

No quadro dessas concepções, pareceu mais prudente a Constantino — que tinha muito medo de recair em pecado e assim pôr em risco sua eterna salvação — postergar seu batismo para o fim de sua vida.

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Artigos precedentes e continuação do curso pelo link: Curso Básico de História da Igreja

set 012011
 

Perseguições aos primeiros cristãos

Ensaio do Pe. José Arnóbio Glavan, EP

Como vimos, as perseguições movidas pelo Império contra os cristãos, tinham como motivo, a insegurança que o cristianismo produzia ao paganismo, e de modo particular, no culto divino prestado aos imperadores, no que viam estes últimos, seu próprio poder político ameaçado. Não podendo, obviamente, declinar a verdadeira causa, encontravam-se na contingência de apresentar ao povo falsas razões para tal procedimento. Assacavam, assim, contra os cristãos acusações várias: ateísmo, por recusarem prestar culto aos deuses; causa de catástrofes públicas por descontentarem as divindades; banquetes licenciosos nos quais se praticava o canibalismo, numa alusão à Sagrada Eucaristia; etc.

Imperador Trajano

Imperador Trajano

Como vimos essas perseguições tiveram inicio com Nero, no ano de 64dC. Desta data até o começo do quarto século seguiram-se —  com crescente intensidade mas também com longos períodos de calmaria e relativa paz — várias grandes investidas.

Podemos dividir tal história em duas épocas: a primeira que vai de Nero (54-69) ao imperador Felipe, o árabe (244-249), e a segunda, de Décio (249-251) a Constantino Magno que, em 313, pelo edito de Milão põe fim, definitivamente, às perseguições.

Tratamos acima das perseguições de Nero e Domiciano,  que se sucederam no trono imperial com o intervalo pacífico de dois imperadores: Vespasiano e Tito o antigo general da tomada de Jerusalém.

A Domiciano sucedeu Trajano  (98-117). Sob seu governo foi elaborado, para uso das autoridades militares do Império, um regulamento com o qual se pretendia dar aparência de legalidade jurídica à opressão aos seguidores de Jesus Cristo. Previa-se que estes não deveriam ser objeto de busca e captura sumárias, nem valeriam, contra eles, denúncias anônimas. Também seriam “benevolamente” agraciados com a liberdade no caso de renegarem a fé. É deste tempo o famoso martírio do grande apologeta Santo Inácio de Antioquia.

Após as sangrentas perseguições de Marco Aurélio (161-180) sob cujo governo deu-se, provavelmente, o martírio de santa Cecília, e de Septimo Severo (193-211), encerra-se a primeira época de perseguições e segue-se quase meio século de relativa tranqüilidade.

A Segunda época abre-se com o imperador Décio e vai até o edito de liberdade concedido por Constantino I.

Décio (249-251) preocupado com o paulatino enfraquecimento do Império, e do culto pagão oficial, resolveu reforçá-lo, decretando a obrigatoriedade para todos os cidadãos de manifestar por um ato público, sua submissão aos deuses. Para testemunho disso, deveriam oferecer publicamente um sacrifício às divindades, mediante o qual receberiam um libellus (certificado) do cumprimento da lei. As penas de prisão, confisco de bens, escravidão e mesmo a de morte, eram aplicáveis aos refratários. É este o fato novo, que justifica a classificação de uma nova etapa na história das perseguições e que de certo modo altera, fundamentalmente, os procedimentos legais iniciados por Trajano. De fato, para efeito do cumprimento dessa lei, os cristãos podiam já ser procurados e eram estes, naturalmente, os mais visados. Data deste período o glorioso martírio de Santa Águeda.

O resultado foi que a perseguição se intensificou imensamente. Cristãos houve, que diante de ameaças de atrozes sofrimentos, vacilaram acabando por ceder às exigências imperiais; são os lapsi (caídos). Numerosos dentre eles, entretanto, se arrependiam e voltavam implorando o perdão, e não poucos lavavam suas faltas no sangue, pelo martírio que então corajosamente enfrentavam. A Igreja se enriqueceu,  assim, com uma multidão incontável de gloriosos mártires, de ambos os sexos e todas as idades, que povoaram o firmamento da História, e fecundaram, como nunca, a Santa Igreja de Deus. Tal fato provocou o dito célebre de Tertuliano de que esse sangue é semens Christianorum [semente de cristãos](1). Sucederam-se os imperadores Treboniano Galo (251-253), sob cujo governo houve relativa paz, e Valeriano (253-260), que recrudesceu as perseguições. Entretanto, quem se excedeu a todos na violência foi Diocleciano (284-305), que promoveu a última e a mais sangrenta das perseguições.

Imperium_Mapa_Romao_Imperio_Roma_deroma_mapa_Vaticano_MuseusComeçou por reorganizar o império, dividindo-o em duas unidades políticas, instituindo assim  a diarquia (dois governos): a do Oriente, cujo governo reservou a si, e a do Ocidente confiada a Maximiano, soldado rude mas extraordinariamente enérgico. Completou, posteriormente tal reforma, constituindo mais duas unidades e nomeando mais dois imperadores para as governarem, gozando estes, entretanto, de honras inferiores. O título de César Augusto era atribuído aos dois primeiros enquanto aos outros se dava, simplesmente, o de César. Estava instituída assim a chamada   tetrarquia (quatro governos), com dois Augustos e dois Césares, sendo que aos Augustos deveriam suceder, como herdeiros, os Césares, e novos Césares serem nomeados.

Quando Diocleciano instituiu a tetrarquia, havia já trinta anos que os cristãos estavam em paz.  Por toda parte eles se multiplicavam e mesmo entre os funcionários do Império, magistrados, soldados, numerosos eram os cristãos. Dizia-se que as próprias esposa e filha, de Diocleciano, Prisca e Valéria, acalentavam simpatia para com  a religião de Cristo, e até mesmo — certamente exagero — que o César Constâncio Cloro, estava prestes a se converter.

Certo é que por toda parte o paganismo deixava entrever sua ruína próxima. O famoso dito de Tertuliano hipoteticamente dirigido ao Imperador, em começos do III século, é sintomático neste sentido: “Não somos senão de ontem, mas enchemos vossas cidades; vossas casas vossas praças; o Exército e o Conselho Real; os campos e as tribos, vossos palácios o Senado e o Fórum. Se nós nos retirarmos, sereis esmagados por vossa imensa solidão.

Ao que parece foi o César Galério, inimigo do partido de Constâncio Cloro simpático ao Cristianismo, que alertou Diocleciano para esta situação e o induziu a mover a mais atroz de todas as perseguições, desencadeada no ano de 295, e por cerca de dez anos fez correr o sangue de milhares de mártires entre eles Santa Inês, São Sebastião, Santa Catarina de Alexandria, São Brás, Santos Cosme e Damião, entre muitíssimos outros.

Bibliografia

(1) Plures efficimur quoties metimur a vobis, semens est sanguis christianorum (quanto mais somos dizimados por vós tanto mais crescemos, o sangue dos cristãos é semente), in Tertuliano, Apologeticum, 50