maio 062012
 

Concedei-me

Oração composta e rezada diariamente por São Tomás[2]

São Tomás de Aquino[3]

São Tomás de Aquino

São Tomás de Aquino

 

 Concedei-me [1], Deus misericordioso,

que aquilo que vos agrada:

ardentemente desejar,

prudentemente investigar,

sinceramente apreciar,

perfeitamente consumar.

 

Para louvor e glória de vosso nome:

ordenai minha vida,

fazei-me compreender o que quereis de mim,

ajudai-me a cumprir o que é necessário

e o que seja útil para a minha alma.

 

Que a Vós, Senhor, minha via seja segura e completa,

sem esmorecer nas prosperidades ou adversidades,

para que Vos renda graças nas prosperidades,

e mantenha a paciência nas adversidades,

não me deixando exaltar por aquelas,

nem me desanimando por estas.

 

Que não me alegre em nada que não me leve a Vós,

tampouco me entristeça, exceto quando afastado de Vós,

a ninguém desejando comprazer, ou temer desagradar, salvo a Vós.

Que as coisas passageiras a mim se aviltem por Vós,

estimadas todas as vossas coisas me sejam, mas Vós,

ó Deus, mais que tudo.

 

Que me causem desgosto todas as alegrias sem Vós,

nada desejando além de Vós.

Que me deleite o trabalho para Vós,

e tedioso o repouso sem Vós.

Dai-me constantemente um coração por Vós elevado,

com dor e propósito de emenda por minhas faltas, ponderado.

 

Fazei-me, meu Deus:

humilde sem ficção,

alegre sem dissipação,

sério sem depressão,

oportuno sem opressão,

ágil sem frivolidade,

veraz sem duplicidade,

temendo-vos sem desesperação,

confiante sem presunção,

corrigindo o próximo sem pretensão,

edificando-o pela palavra

e pelo exemplo sem ostentação,

obediente sem contradição,

paciente sem murmuração.

 

Dai-me, ó dulcíssimo Deus, um coração:

vigilante, distanciando-se de Vós qualquer curiosa cogitação,

nobre, às vilezas, isento de indigna afeição,

invencível, que não o fraqueje nenhuma tribulação,

íntegro, que não o seduza nenhuma violenta tentação,

reto, que não o desvie nenhuma perversa intenção.

 

Concedei-me, Senhor meu Deus:

uma inteligência para vos conhecer,

um amor para vos buscar,

uma sabedoria para vos encontrar,

um convívio para vos agradar,

uma perseverança fiel para vos esperar,

e, por fim, uma confiança para vos abraçar.

 

Que eu seja transpassado por vossas penas pela penitência,

que no caminho seja agraciado por vossos benefícios pela graça,

e gozar de vossas alegrias na Pátria pela glória.

Amém.

 

Texto latino 

Explicação prévia para os iniciantes em latim – algumas curiosidades

São Tomás de Aquino, pintura na Igreja Nossa Senhora do Rosário, em São Paulo, Brasil

São Tomás de Aquino, pintura na Igreja Nossa Senhora do Rosário, em São Paulo, Brasil

O texto abaixo exige algumas explicações prévias para os iniciantes no latim:

Em primeiro lugar, tal como o latim clássico, o medieval desconhecia a diferença entre as letras “v” e “u”. Assim, o leitor poderá estranhar que em lugares nos quais se pensaria ser correto um “v”, teremos um “u”. O iniciante deve habituar-se em distinguir a diferença entre “u-v” e “u-u” para a compreensão do texto ao se ler os escritos antigos. Eis um exercício interessante para os leitores que um dia pretendem ler tais manuscritos…

Em segundo lugar, o pronome “mihi” está grafado de uma forma diferente da que estamos habituados: “michi”. Esse pormenor evidencia que a pronúncia feita por alguns eclesiásticos: “miki”, em vez de “mirri” ou “mii”, não é de modo algum infudada. Como dissemos, existe grande variedade na pronúncia dessa partícula por parte dos latinistas.

Em terceiro lugar, há a variante “mee” em vez de “meae”, não julgue o leitor que seria um erro de transcrição. Essa variante ocorria com frequencia no latim medieval.

O último pormenor interessante do latim medieval transcrito abaixo é que se escreve “ylarem”, com “y” grego, e não “hilarem”, como nos textos eclesiásticos atuais. Assim, na Idade Média se escrevia “Ystoria”, em vez de “Historia”, “Ylarem”, em vez de “Hilarem”. Eis outra particularidade interessante do latim medieval.

Além de notar essas particularidades, o leitor poderá degustar a poesia latina nessa oração, que demonstra como São Tomás não era apenas um filósofo a falar de Deus em termos abstratos. Muito pelo contrário, se percebe um coração cheio de entusiasmo, equilíbrio e humildade, além de um invulgar senso poético e métrico. Esse modo de escrever – digno de se enquadrado numa melodia gregoriana – é realmente cativante. Experimento o leitor!

 

Oratio quam fecit beatus Thomas

Concede michi misericors Deus

qui tibi piacita sunt ardenter concupiscere,

prudenter  inuestigare,

ueraciter agnoscere

et perfecte implere.

Ad laudem et gloriam nominis tui ordina statum meum,

et quod a me requiris tribue ut sciam,

et da ex equi ut oportet et expedit anime mee.

Via mea, Domine, ad te tuta sit, recta et consummata,

non deficiens iriter prospera et aduersa,

ut in prosperis tibi gratiam referam 

et in aduersis seruem patientiam,

ut  in illis non extollar et in  istis  non deprimar; 

de nullo gaudeam nisi quod promoueat me apud te,

nec de aliquo doleam nisi quod abducat me a te; 

nulli  piacere appetam uel displicere timeam nisi te.

 Vilescant michi omnia transitoria propter te,

et cara sint michi omnia tua

et tu Deus super quam omnia.

Tedeat me omnis gaudii quod est sine te

nec cupiam aliquid quod est extra te.

Delecte me labor qui est pro te;

et tediosa sit michi omnis quies que non est in te.

Frequenter da me cor meum ad te dirigere,

et defectionem meam cum emendationis proposito dolendo pensare.

Fac me, Deus meus,

humilem sine fictione,

ylarem sine dissolutione, 

tristem sine deiectione,

maturum sine grauiture,

agilem sine leuitate,

ueracem sine duplicitate,

te timentem sine desperatione,

sperentem sine presumptione,

proximum corrigere sine simulatione,

ipsum edificare uerbo et exempio sine elatione,

obedientem sine contradictione,

patientem sine murmuratione.

Da michi,dulcissime Deus,

cor peruigil quod nulla abducat a te curiosa cogitatio; 

da nobile quod nulla deorsum trahat indigna affectio; 

da in uictum quod nulla fatiget tribulatio; 

et da liberum quod nulla sibi uendicet uiolenta temptatio; 

et da rectum  quod nulla obliquet sinistra intentio.

Largire michi, Domine Deus meus, 

intellectum  te  cognoscentem,

diligentiam te querentem,

sapientiam te inuenientem,

conuersationem tibi placentem,

perseuerantiam te fideliter expectantem,

et fiduciam  te finaliter amplectentem; 

tuis penis configi per penitentiam, 

tuis beneficiis uti  in uia per gratiam,

et tuis gaudiis in patria frui per gloriam. Amen.

 

Por vezes o Doutor Angélico é representado na iconografia com asas

Por vezes o Doutor Angélico é representado na iconografia com asas


[1] Texto latino da oração Concede michi extraído de: Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino, cap. 29. In: Ibid. Ed. Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1996, p. 156, l. 56-86. Tradução de Diác. Felipe de Azevedo Ramos, EP com ligeiras adaptações para a língua portuguesa. Embora não conste o formato versificado no texto original acima mencionado, optou-se por dividir o texto para melhor compreensão e para destacar o estilo rimado em certas partes do texto de São Tomás de Aquino.

[2]A introdução completa a respeito desta oração se lê em Guilherme de Tocco (cf. op. cit., p. 156, l.53-56): “De quo deuoto et sancto doctore dicitur quod infra scriptam orationem composuit, continentia completam, affectione deuotam et stilo politam, quam omni die dicebat. Oratio quam fecit beatus Thomas, quam omni die dicebat”.

[3]Embora alguns catálogos mencionem esta oração como sendo de dúbia autenticidade, assignamos a autoria a São Tomás por estar inserida na quarta e última revisão do autor da História de São Tomás de Aquinonum trecho dedicado ao tema da contemplação e da oração. Para mais detalhes sobre este texto e sua autenticidade: Cf. Doyle, A. I. A Prayer Attributed to St. Thomas d’Aquinas. Dominican Studies, l, 1948, p. 229-238.

set 302011
 

Leve ao menos esta lembrança…

Agradecida ao mendigo que salvou a vida de seu filho, a boa mãe lhe deu uma Medalha Milagrosa como lembrança. O andarilho pouco tinha de piedoso, mas ficou comovido com a fé daquela mulher.
Carlos Tonelli

Para ler a versão latina (in latine)

Alegres e despreocupados, Pedro e Maurício, dois meninos de sete anos, voltam da escola pelos caminhos de uma aldeia do interior da Bélgica em fins do século XIX. Passando por uma ponte sobre o rio Meuse que circunda o vilarejo, olham para suas imagens refletidas nas águas e atiram algumas pedras para ver quem conseguia “acertar” o outro. Seguindo adiante, continuam sua brincadeira. De repente, Pedro se aproxima demais do barranco, resvala e cai no rio.

— Socorro! Socorro! — gritava, na margem, Maurício.

— Socorro! — bradava Pedro, que a custo conseguia manter a cabeça fora da água.

naufragoafogadoriosalvavidasnadadorresgaterioriverbombeiro

Entretanto, o povoado estava um pouco distante, seus gritos infantis não chegavam até lá. O socorro lhes veio de onde ninguém esperava: um mendigo que descansava embaixo da ponte atirou-se ao rio sem perda de tempo e logo retornou trazendo o menino são e salvo. Depois de acalmar as duas crianças, decidiu acompanhá-las até a aldeia.

Imagine-se o susto da mãe ao ver chegar seu filho, todo molhado, nos braços de um desconhecido maltrapilho. Posta a par do que havia acontecido, agasalhou com todo carinho o filho e logo se voltou para seu benfeitor:

— Como poderei agradecer-lhe, senhor? Sou pobre também, mas quero mostrar-lhe minha gratidão.

— Não se preocupe, senhora. Dê graças ao bom Deus, como dizia minha mãe, por neste dia eu estar descansando debaixo daquela ponte.

— Por favor, gostaria tanto de dar-lhe alguma coisa!

— Bom, já que insiste tanto, um prato de comida não me faria mal, pois há muito tempo não como algo quente.

Transbordante de gratidão, preparou ela para o mendigo o melhor almoço que pôde. Quando este, depois de larga conversa, estava por sair, ela tirou do pescoço do filho uma corrente prateada com a Medalha Milagrosa e lhe disse:

— Meu senhor, leve ao menos esta lembrança. Certa estou de que foi Nossa Senhora quem dispôs tudo, pois todos os dias peço a Ela que proteja meu filho. Tenha sempre esta medalha no pescoço, eu lhe peço. Este é o maior bem que lhe posso fazer.

O andarilho pouco tinha de piedoso, mas ficou comovido com a fé e o zelo maternal daquela mulher, pois esta lhe trouxe à lembrança a doce fisionomia de outra senhora, que há muitos anos ele não via, e que o carregou nos braços quando criança e também o recomendava diariamente à Mãezinha do Céu… Tomou, pois, a medalha, pôs no pescoço, despediu-se e nunca mais foi visto naquela aldeia.

Pedro cresceu e, sendo já um jovem vigoroso, ouviu o chamado de Jesus para abandonar todos os bens desta terra e decidiu ser missionário. Cerca de 20 anos depois do episódio narrado acima, ei-lo sacerdote, designado pelos superiores para atender os doentes pobres num hospital das Irmãs de Caridade, no interior da França.

Cruzou ele pela primeira vez os amenos jardins daquela casa religiosa e foi apresentar-se à Madre Superiora. Esta o cumprimentou com respeito e lhe disse:

— Padre, como é providencial sua chegada! Estamos com um enfermo em estado terminal e em sério risco de morrer impenitente. Por favor, veja logo o que é possível fazer por ele!

O jovem padre dirigiu-se à capela, rogando a Jesus Eucarístico que lhe inspirasse palavras adequadas para tocar aquele coração endurecido. Voltou os olhos para uma imagem da Virgem e implorou-lhe com toda confiança: “Refúgio dos Pecadores, rogai por ele!”

medalhamilagrosaarautosmiraculousmedailnossasenhoradasgracasbrasilmariamaedejesusCom passo sereno, entrou na enfermaria, onde o doente lhe deu a pior acolhida possível:

— Fora daqui! Não quero nada com padres. Fique do lado de fora, você com seus santos!

Disposto a tudo fazer para salvar aquela alma, Pe. Pedro não se deixou abalar por esse rugido de impiedade. Notando que o ímpio falava com um sotaque pouco comum na região, aproveitou-se do fato para entabular uma conversa.

— Ora veja! Você não é francês, não é verdade? Você parece ser… belga. Acertei?

— Sim, e como sabe?

— Pelo seu sotaque. Há quanto tempo está aqui?

Com isso foi se aproximando da cama do enfermo. Mostrando-lhe um sorriso nos lábios e um rosto radiante de bondade, prosseguiu:

— Sabe, sou belga também, da região do vale do rio Meuse, e brinquei muito às suas margens. E você, de onde é?

O doente mostrava-se aliviado em poder conversar um pouco com um conterrâneo. Procurando ser amável ao máximo, o sacerdote conduziu aos poucos a conversa para assuntos religiosos e, discretamente, tirou a estola da maleta.

Vendo isso, o intratável enfermo descarregou sobre ele um novo surto de imprecações, enquanto procurava erguer-se em seu leito. Ao fazer esse movimento, deixou aparecer sobre seu peito desnudo uma corrente prateada da qual pendia uma Medalha Milagrosa.

O Pe. Pedro reconheceu-a imediatamente! Ocultando a forte emoção que sentia, perguntou:

— Diga-me, quem lhe deu essa medalha?

Como resposta, ouviu do infeliz ateu a história de como ele, cerca de 20 anos antes, a ganhara de presente da mãe de um menino que ele havia salvado das águas do rio.

Sem conter alguns soluços, disse-lhe o sacerdote:

— Sou eu esse menino! Estive sempre à procura daquele mendigo. Por ele rezei todos os dias. Desde que sou padre, lembro-me dele em todas as minhas Missas. E agora o encontro aqui! Veja bem, meu amigo e benfeitor, isto é uma prova de quanto Nossa Senhora lhe quer bem. Assim como Ela, há 20 anos, encaminhou você para aquela ponte a fim de me salvar a vida, agora Ela mesma me traz aqui, como sacerdote de Cristo, para salvar sua alma.

Tocado pela graça, o mendigo derramou muitas lágrimas de arrependimento. Depois de uma sincera confissão de toda a sua longa vida de pecados, recebeu a Unção dos Enfermos, depois o Santo Viático, e expirou serenamente na paz do Senhor.