ago 232011
 

A Igreja deixa o ninho

Pe. José Glavan, EP

Na Palestina como vimos, onde de suas raízes judaicas nasceu o cristianismo, o desenvolvimento das comunidades foi muito dificultado pela oposição e perseguição que a estrutura oficial do judaismo movia contra os cristãos. Mas mesmo assim não deixaram de crescer, e São Tiago Maior foi, provavelmente, o primeiro apóstolo a morrer por Cristo, na perseguição movida por Herodes Agripa (cf. At 12, 1-2), tornado rei por beneplácito do imperador Calígula. Vinte anos depois a violência  desatou-se contra Tiago Menor o “irmão” do senhor, bispo de Jerusalém. Acusado injustamente pelo sumo sacerdote Anás, foi condenado à morte. Atirado do alto da torre do Templo, conservava ainda um resto de vida que lhe foi, em seguida, arrancada pelo apedrejamento e por golpes de massa, o que lhe valeu, por volta do ano 62, a coroa do martírio.

Musei Capitolini_Romano_Cavaleiro_Imperador_Estatua_Equeste_Museus_Capitolinos_Roma

Os imperadores romanos perseguiam os primeiros cristãos

A perseguição aos cristãos de Jerusalém acabou por favorecer a expansão do cristianismo, levando os Apóstolos e seus discípulos a pregar em terras distantes.

Por outro lado, a presença de alguns grupos nacionalistas radicais dentro do Judaísmo, como os zelotas, ou os sicários, sempre prontos a promover sangrentas rebeliões, exasperava continuamente os romanos provocando violentas reações com sucessivas guerras. No ano 70dC, o general Tito, move uma última guerra contra Jerusalém e inicia um cruel cerco de seis meses, ao fim do qual os soldados romanos transpõem as altas muralhas da cidade, tomam-na e passam os sobreviventes a fio de espada. Estima-se  em um milhão e oitocentos mil as vítimas do cerco e da tomada da cidade.

Um historiador israelita, contemporâneo desses acontecimentos, Flávio Josefo, narra cenas atrozes do acontecimento: durante o cerco, a fome assolou Jerusalém de maneira que os habitantes passaram a cozer o couro dos calçados para com eles se alimentarem, depois de consumidos todos os animais disponíveis, mesmo cavalos cães ratos, e até mesmo o que de mais repugnante encontravam. Não faltaram cenas horríveis de canibalismo: os que sucumbiam pela fome tinham suas carnes objeto de uma sinistra disputa pelos sobreviventes. Josefo conta o caso de uma mãe que sacrificou seu filho recém nascido para alimentar-se de suas carnes, fato que horrorizou até mesmo os mais ferozes bandidos (1). Entre os infelizes que buscavam a fuga, alguns engoliam moedas de ouro para lograrem escapar com suas riquezas. Um deles, porém, foi descoberto, a notícia correu célere, e o resultado foi uma horrível matança de fugitivos, que tinham seus ventres abertos pela espada. O historiador israelita diz que numa só noite dois mil fugitivos encontraram este triste fim.

Tito havia dado ordem para poupar o Templo, pois conhecia bem o que ele representava para os judeus, e não queria levar a vindita além de certo limite. Entretanto, no delírio da matança e da embriaguez, um soldado atirou uma tocha acesa no interior do Templo, provocando um imenso incêndio que destruiu aquele majestoso edifício, onde tantas vezes ressoara a voz do Divino Mestre, e de onde, ao sair, Jesus profetizara seu triste fim (2).

Pouco depois, nova incursão dos romanos leva à completa destruição da cidade. Seus habitantes que alcançaram escapar à sanha sanguinária dos romanos, dispersam-se pelo mundo, principalmente em Alexandria, no Egito, em Roma e no norte da África. No ano 130 o imperador Adriano reconstroe a cidade dando-lhe o nome pagão de Aelia Capitolina, e nos lugares santos, erige templos em honra a Júpiter e Afrodite.

Conta ainda, Josefo, um curioso e trágico episódio: quatro anos antes do cerco de Jerusalém, viu-se um camponês, junto às muralhas da cidade, a bradar: “voz sai do Oriente, voz sai do Ocidente, uma voz vem dos quatro ventos: voz contra Jerusalém e contra o Templo; voz contra os recém nascidos e contra os recém casados; voz contra todo o povo” A partir daí, dia e noite percorria a cidade a repetir as mesmas palavras, e redobrava os brados nos dias de festa. Preso, interrogado e açoitado, a cada pergunta ou açoite respondia sem se queixar: “desgraça para Jerusalém!” Considerado louco inofensivo foi posto em liberdade. Continuou assim por sete anos e meio repetindo, com sempre maior insistência, seus misteriosos vaticínios.

Certo dia, por ocasião do último cerco de Jerusalém enquanto repetia seus habituais brados acrescentou: “desgraça para mim também!” Neste instante cai morto atingido por uma pedra arremessada por uma máquina de guerra dos romanos. Curiosamente, este homem levava o mesmo nome de nosso Divino Redentor: chamava-se Jesus. (3)

Cinqüenta anos após a tomada de Jerusalém, aparece um aventureiro judeu ladrão e celerado, Barcochébas, cujo nome significa “filho da estrela”, dizendo-se a estrela de Jacob (cf. Nm 24, 17) e unicamente por seu nome se apresenta como o verdadeiro Messias (4). Encontra logo uma multidão de crédulos que o seguem, desencadeando assim nova sedição. Uma vez mais os romanos intervêm, sufocam a rebelião e Adriano, depois de executar horrível matança, os deporta para sempre da Judéia. Aliás o levante de Barcochébas não foi o único. Numerosos foram os falsos messias que nesse período se apresentaram, entretanto o que mais impressiona é a facilidade com que conseguiam crédulos adeptos.

Premidos por todas essas catástrofes, e submetidos a diáspora (dispersão) os judeus, representados por rabinos fariseus, se reúnem num sínodo, na cidade de Jâmnia (5), por volta do ano 90dC, onde definiram posições relacionadas à versão hebraica das Sagradas Escrituras, e à disciplina judaica. Alguns anos depois, no início do segundo século, esses mesmos rabinos fariseus vinham a fechar seu cânon das Escrituras, resultando, mais tarde, no chamado Texto Massorético, ou a Bíblia hebraica como hoje se conhece. Naquela época, entretanto, a Igreja já se tinha desligado definitivamente das estruturas do judaismo onde tinha nascido, e se desenvolvia em suas próprias bases institucionais e com sua vida própria, movidas ambas pelo Divino Espírito Santo. Deixava assim seu “ninho” para voar livre, nos horizontes da História da Salvação.

Chegamos assim ao fim do primeiro século e início do segundo, com o que se  encerra o chamado período apostólico — que conhecera a Cristo Nosso Senhor e no qual vivera e atuara os apóstolos e as testemunhas oculares da vida e dos ensinamentos de Jesus —  e se abre o período denominado subapostólico. Abre-se também a era dos Padres da Igreja, e apologetas, como veremos mais adiante.

Bibliografia

(1) Flavio Josefo, “História dos Hebreus”, II, Liv. VI, cap. XXXI, 476, Edit. Da Américas São Paulo, 1963. (2) cf. Mt 1-2; (3) Flavio Josefo op. cit. Liv. V, cap. XXXVI, 429. (4) cf. Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, IV, 6,8; (5) Antiga cidade filistéia na costa mediterrânea a 20 km ao sul de Jafa. Nela se instalou uma escola rabínica célebre, depois de 70 dC foi sede do Sinédrio, e centro espiritual do judaismo até 135dC.

jul 312011
 

A Herança dos Apóstolos

As perseguições de Domiciano (81-96) que se fazia chamar “Dominus ac Deus” (Senhor e Deus), teriam, por seu lado, levado São João Evangelista ao desterro na ilha de Patmos, onde, por volta do ano 90dC, escreveu seu Apocalipse (1). Neste livro está manifesto o empenho do Apóstolo de sustentar, na fé e na esperança, as jovens comunidades cristãs, duramente provadas pelas perseguições que se sucediam e cresciam em intensidade.

Martírio de São João Evangelista, Alsacia

Martírio de São João Evangelista, Alsacia

Entretanto, sob a tempestade, o cristianismo se expandia pelas vastidões do imenso império.

Em Antioquia, capital da Síria, graças ao apostolado de São Paulo, formou-se uma florescente comunidade, que irradiava sua influencia sobre todo o mundo helênico. Foi precisamente aí que os seguidores de  Jesus Cristo foram, por primeira vez, chamados cristãos.(2). Até então eram conhecidos como galileus ou nazarenos. O Apóstolo das Gentes fundou diversas outras importantes comunidades como a da rica e próspera Corinto, e a da idolátrica Éfeso, cujo culto à Ártemis fanatizava a população (3).

Na Gália, hoje França, estabeleceram-se comunidades pujantes. Informações pouco documentadas e muito contestadas nos dão conta de que lá teriam se estabelecido os irmãos Marta, Maria e Lázaro, tendo este último sido bispo de Marselha. Também Dionísio, convertido por São Paulo no Areópago de Atenas, teria evangelizado a Gália tornando-se bispo de Paris. O fato é que, tanto um quanto outro, são objeto de muita veneração em terras francesas.

Os Atos dos Apóstolos registram a presença de peregrinos romanos no dia de Pentecostes (4). Talvez estes, certamente judeus, tenham se convertido naquela ocasião, e regressando a Roma, capital do império, tenham pregado entre os judeus da diáspora (dispersão) e dado origem às primeiras comunidades cristãs naquela cidade. Foram estas, provavelmente, as que receberam os apóstolos Pedro e Paulo.

No norte da África desenvolveram-se florescentes comunidades cristãs, e muitas sedes episcopais foram ali estabelecidas. Os Padres atestam também a presença de comunidades cristãs na Espanha onde se acredita que esteve São Tiago Maior, e provavelmente São Paulo, na Britânia (hoje Inglaterra), e na Alemanha.

São Pedro e São Paulo, Mosteiro de Monserrat, Barcelona, Espanha

Apóstolos, Mosteiro de Monserrat, Barcelona, Espanha

No Egito, onde afirma-se que São Marcos fundou a sede episcopal de Alexandria e na Índia onde escritos apócrifos apontam São Tomé como evangelizador, desenvolveram-se também muitas comunidades e dioceses.

A Igreja nascente se espalhava por toda a terra, e não apenas no Oriente, isto é, na Palestina onde tinha nascido, na Síria, Egito, Ásia Menor e Grécia; mas também no Ocidente, Gália (França) Espanha, África, Germânia (Alemanha), Britânia (Inglaterra), e mesmo fora do Império como na Pérsia e na Índia.

Bibliografia

(1) cf. Ap 1, 9; (2) cf. At 11, 26; (3) cf. At 19, 23-40); (4) cf. At 2, 10;