set 152012
 

Detalhe da Igreja Nossa Senhora do Rosário, Seminário São Tomás de Aquino em São Paulo, Brasil

Quem disse que a música latina se restringe às preciosas relíquias do passado?
Falasar em música na língua latina não significa apenas relembrar saudoso as sóbrias e tocantes melodias do gregoriano.
Um arauto do Evangelho, que preferiu manter-se no anonimato, compôs um bela melodia polifônica para coro e e acompanhamento de orquestra de câmara tendo como letra aslguns versículos inspirados da bela poesia do rei profeta Davi (Cf. Sl 115,1.12-13).

Letra:

Non nobis, Domine, non nobis,
sed nomini tuo da gloriam
super misericordia tua et veritate tua.
Qui timent Dominum, speraverunt in Domino: adiutorium eorum et scutum eorum est.
Dominus memor fuit nostri et benedicet nobis.

A estreia da peça teve por ocasião 73º aniversário do Fundador dos Arautos, Mons. João Clá Dias, EP, e como cadre, a Basílica Nossa Senhora do Rosário, localizada em Caieiras, Grande São Paulo. Foi executada pelo Coro e Orquestra Internacional dos Arautos do Evangelho.
Para ouvir a melodia, acesse o link:
http://thabor.blog.arautos.org/non-nobis-domine/

ago 232011
 

A Igreja deixa o ninho

Pe. José Glavan, EP

Na Palestina como vimos, onde de suas raízes judaicas nasceu o cristianismo, o desenvolvimento das comunidades foi muito dificultado pela oposição e perseguição que a estrutura oficial do judaismo movia contra os cristãos. Mas mesmo assim não deixaram de crescer, e São Tiago Maior foi, provavelmente, o primeiro apóstolo a morrer por Cristo, na perseguição movida por Herodes Agripa (cf. At 12, 1-2), tornado rei por beneplácito do imperador Calígula. Vinte anos depois a violência  desatou-se contra Tiago Menor o “irmão” do senhor, bispo de Jerusalém. Acusado injustamente pelo sumo sacerdote Anás, foi condenado à morte. Atirado do alto da torre do Templo, conservava ainda um resto de vida que lhe foi, em seguida, arrancada pelo apedrejamento e por golpes de massa, o que lhe valeu, por volta do ano 62, a coroa do martírio.

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Os imperadores romanos perseguiam os primeiros cristãos

A perseguição aos cristãos de Jerusalém acabou por favorecer a expansão do cristianismo, levando os Apóstolos e seus discípulos a pregar em terras distantes.

Por outro lado, a presença de alguns grupos nacionalistas radicais dentro do Judaísmo, como os zelotas, ou os sicários, sempre prontos a promover sangrentas rebeliões, exasperava continuamente os romanos provocando violentas reações com sucessivas guerras. No ano 70dC, o general Tito, move uma última guerra contra Jerusalém e inicia um cruel cerco de seis meses, ao fim do qual os soldados romanos transpõem as altas muralhas da cidade, tomam-na e passam os sobreviventes a fio de espada. Estima-se  em um milhão e oitocentos mil as vítimas do cerco e da tomada da cidade.

Um historiador israelita, contemporâneo desses acontecimentos, Flávio Josefo, narra cenas atrozes do acontecimento: durante o cerco, a fome assolou Jerusalém de maneira que os habitantes passaram a cozer o couro dos calçados para com eles se alimentarem, depois de consumidos todos os animais disponíveis, mesmo cavalos cães ratos, e até mesmo o que de mais repugnante encontravam. Não faltaram cenas horríveis de canibalismo: os que sucumbiam pela fome tinham suas carnes objeto de uma sinistra disputa pelos sobreviventes. Josefo conta o caso de uma mãe que sacrificou seu filho recém nascido para alimentar-se de suas carnes, fato que horrorizou até mesmo os mais ferozes bandidos (1). Entre os infelizes que buscavam a fuga, alguns engoliam moedas de ouro para lograrem escapar com suas riquezas. Um deles, porém, foi descoberto, a notícia correu célere, e o resultado foi uma horrível matança de fugitivos, que tinham seus ventres abertos pela espada. O historiador israelita diz que numa só noite dois mil fugitivos encontraram este triste fim.

Tito havia dado ordem para poupar o Templo, pois conhecia bem o que ele representava para os judeus, e não queria levar a vindita além de certo limite. Entretanto, no delírio da matança e da embriaguez, um soldado atirou uma tocha acesa no interior do Templo, provocando um imenso incêndio que destruiu aquele majestoso edifício, onde tantas vezes ressoara a voz do Divino Mestre, e de onde, ao sair, Jesus profetizara seu triste fim (2).

Pouco depois, nova incursão dos romanos leva à completa destruição da cidade. Seus habitantes que alcançaram escapar à sanha sanguinária dos romanos, dispersam-se pelo mundo, principalmente em Alexandria, no Egito, em Roma e no norte da África. No ano 130 o imperador Adriano reconstroe a cidade dando-lhe o nome pagão de Aelia Capitolina, e nos lugares santos, erige templos em honra a Júpiter e Afrodite.

Conta ainda, Josefo, um curioso e trágico episódio: quatro anos antes do cerco de Jerusalém, viu-se um camponês, junto às muralhas da cidade, a bradar: “voz sai do Oriente, voz sai do Ocidente, uma voz vem dos quatro ventos: voz contra Jerusalém e contra o Templo; voz contra os recém nascidos e contra os recém casados; voz contra todo o povo” A partir daí, dia e noite percorria a cidade a repetir as mesmas palavras, e redobrava os brados nos dias de festa. Preso, interrogado e açoitado, a cada pergunta ou açoite respondia sem se queixar: “desgraça para Jerusalém!” Considerado louco inofensivo foi posto em liberdade. Continuou assim por sete anos e meio repetindo, com sempre maior insistência, seus misteriosos vaticínios.

Certo dia, por ocasião do último cerco de Jerusalém enquanto repetia seus habituais brados acrescentou: “desgraça para mim também!” Neste instante cai morto atingido por uma pedra arremessada por uma máquina de guerra dos romanos. Curiosamente, este homem levava o mesmo nome de nosso Divino Redentor: chamava-se Jesus. (3)

Cinqüenta anos após a tomada de Jerusalém, aparece um aventureiro judeu ladrão e celerado, Barcochébas, cujo nome significa “filho da estrela”, dizendo-se a estrela de Jacob (cf. Nm 24, 17) e unicamente por seu nome se apresenta como o verdadeiro Messias (4). Encontra logo uma multidão de crédulos que o seguem, desencadeando assim nova sedição. Uma vez mais os romanos intervêm, sufocam a rebelião e Adriano, depois de executar horrível matança, os deporta para sempre da Judéia. Aliás o levante de Barcochébas não foi o único. Numerosos foram os falsos messias que nesse período se apresentaram, entretanto o que mais impressiona é a facilidade com que conseguiam crédulos adeptos.

Premidos por todas essas catástrofes, e submetidos a diáspora (dispersão) os judeus, representados por rabinos fariseus, se reúnem num sínodo, na cidade de Jâmnia (5), por volta do ano 90dC, onde definiram posições relacionadas à versão hebraica das Sagradas Escrituras, e à disciplina judaica. Alguns anos depois, no início do segundo século, esses mesmos rabinos fariseus vinham a fechar seu cânon das Escrituras, resultando, mais tarde, no chamado Texto Massorético, ou a Bíblia hebraica como hoje se conhece. Naquela época, entretanto, a Igreja já se tinha desligado definitivamente das estruturas do judaismo onde tinha nascido, e se desenvolvia em suas próprias bases institucionais e com sua vida própria, movidas ambas pelo Divino Espírito Santo. Deixava assim seu “ninho” para voar livre, nos horizontes da História da Salvação.

Chegamos assim ao fim do primeiro século e início do segundo, com o que se  encerra o chamado período apostólico — que conhecera a Cristo Nosso Senhor e no qual vivera e atuara os apóstolos e as testemunhas oculares da vida e dos ensinamentos de Jesus —  e se abre o período denominado subapostólico. Abre-se também a era dos Padres da Igreja, e apologetas, como veremos mais adiante.

Bibliografia

(1) Flavio Josefo, “História dos Hebreus”, II, Liv. VI, cap. XXXI, 476, Edit. Da Américas São Paulo, 1963. (2) cf. Mt 1-2; (3) Flavio Josefo op. cit. Liv. V, cap. XXXVI, 429. (4) cf. Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, IV, 6,8; (5) Antiga cidade filistéia na costa mediterrânea a 20 km ao sul de Jafa. Nela se instalou uma escola rabínica célebre, depois de 70 dC foi sede do Sinédrio, e centro espiritual do judaismo até 135dC.

jul 302011
 

Tipicamente brasileiro

Deus multiplicou as nações sobre a face da terra, para melhor espelharem suas qualidades infinitas. Sabendo admirar as qualidades de cada povo, amamos a Deus, seu criador.

José Antonio Dominguez

Um amigo paulista — professor catedrático de História — recebeu certa vez em sua casa um visitante francês. Era a primeira vez que este tomava contato com o Brasil. Como é natural, o anfitrião procurou ser o mais amável e acolhedor possível, de acordo com as leis da hospitalidade, que aqui não são escritas em papel, mas no coração. Não há quem visite o Brasil e não se sinta bem recebido; e, ao deixá-lo, não experimente uma pontinha daquele sentimento exclusivamente luso-brasileiro: as saudades…

Mariana, Minas Gerais

Igrejas em estilo barroco luso-brasileiro em Mariana, Minas Gerais

Meu amigo mostrou, pois, ao visitante sua residência. Pessoa de muita fé, cultura e requintado bom gosto, havia decorado primorosamente a casa. À medida que ia mostrando este ou aquele detalhe, fazia notar sua preferência pela cultura francesa, a fim de que seu visitante se sentisse mais à vontade.

De fato, um dos salões tinha móveis Luís XV, os de outro eram estilo Império, e algumas peças eram de artistas franceses. No final, saltou dos lábios do visitante, nos quais se desenhava um sorriso malicioso, a pergunta aguçada:

— Mas… professor, o senhor não fez um salão em estilo tipicamente brasileiro?

O nosso anfitrião compreendeu bem a perplexidade de seu visitante francês… tipicamente francês! E com um sorriso afável respondeu:

— Exatamente, uma das características do espírito tipicamente brasileiro consiste em admirar e assimilar as qualidades dos outros povos. Por isso, o senhor acaba de ver uma casa tipicamente brasileira.

Casas alemãs em Petrópolis, Rio de Janeiro

Casas tipicamente alemãs em Petrópolis, Rio de Janeiro

É que, para o brasileiro, que acolhe em seu país-continente filhos de quase todas as nações da terra, cada povo é como uma pedrinha colorida de um magnífico caleidoscópio (o conjunto das nações). Sabendo admirar as qualidades de cada povo, amamos a Deus, seu criador.

Por vezes, essas qualidades são antagônicas e seria quase impossível representá-las num só povo. Por isso, Deus multiplicou as nações sobre a face da terra, para melhor espelharem suas qualidades infinitas.

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Portal em estilo holandês da cidade de Holambra, São Paulo

jul 122011
 

Moved by the beauty and precision of the Latin language, students of the Theological Institute of St. Thomas Aquinas (ITTA), located in São Paulo have pioneered an unprecedented initiative in Brazil— a  website written in Latin.

For centuries Latin was the universal idiom. Originating from a people living in the Italian province of Lazio, the language of a defeated people became adopted by the Roman conquerors.  The Roman Empire, and hence the Latin language, spread across almost all of Europe, North Africa, and part of the Middle East.

After the fall of the Roman Empire and the yielding of Roman provinces to Germanic kingdoms, Latin was retained as the language of culture.  Monasteries cultivated the language of Cicero both in liturgical contexts, and in the transmission of human sciences. Latin was the language of academia throughout the Middle Ages and much of the modern era. The great thinkers wrote treatises on medicine, physics, theology and law in Latin.

With the advent of modernity, especially with the consolidation of nationalist movements, all Western nations adopted national languages for government administration and teaching purposes. With this move, it could be surmised that Latin would experience the inglorious twilight of its long history.

However Latin stood firm in university lecture halls and remained the official language of Hungary until the nineteenth century. Today, Latin is not only the official language of the Vatican State. Its alphabet is used by more than half the world’s population. There is not a continent without countries using at least one of the Romance languages, especially Spanish, Portuguese or French. Latin is considered by many authors as the main source language of Western culture.

The Internet is a beneficial venue for spreading Latin. Today Finns, Germans, Italians, Americans, Chileans and Poles endeavour to maintain Latin as a living language.

Various professors and student members of the Theological Institute of St. Thomas Aquinas (ITTA) in Brazil, have joined forces with lovers of the language of Cicero, Horace and Virgil, to use the World Wide Web to spread news and articles written in the language of the Fathers of the Church. To access the Praecones Latine site visit the link:

http://latine.blog.arautos.org/

jul 042011
 

História de Santa Maria Goretti

A verdadeira felicidade exige coragem e espírito de sacrifício, rejeição de todo compromisso com o mal e disposição para pagar com a própria vida a fidelidade a Deus e aos seus Mandamentos.

O século XX se iniciou sob a égide do progresso nas comunicações. Com o aperfeiçoamento da fotografia e da imprensa, jornais, folhetos e revistas pululavam por toda parte, noticiando acontecimentos ocorridos nos mais distantes rincões da Terra.

Foi este um fator preponderante para que, em 1902, o mundo cristão pudesse tomar conhecimento da trágica história de uma camponesa italiana de apenas onze anos de idade, brutalmente assassinada com 14 punhaladas, enquanto defendia até o martírio a virtude angélica. Seu nome — Maria Goretti — “se nos apresenta como um incitamento ao zelo da Igreja pela pureza, ao valor dessa virtude que ela sempre inculcou. De tal maneira que mais vale a pena à pessoa sacrificar sua vida do que perder a castidade”.1

Entretanto, a firmeza dessa pequena mártir não nasceu de um momento para outro, mas foi fruto de uma intensa vida espiritual, fortalecida pelo Pão Eucarístico nas suas últimas semanas de vida. Este fato, quiçá, tenha contribuído de modo decisivo para, oito anos depois, o Papa São Pio X facultar a Primeira Comunhão às crianças tão logo lhes desponte o uso da razão, pressentindo os maravilhosos efeitos que a presença de Cristo iria produzir nos corações infantis. “Haverá santos entre as crianças”2, afirmou ele.

Muito se escreveu já a respeito do martírio dessa santa, tão bem cognominada como um “Anjo da Pureza”. Contudo, pouco se comenta de sua breve e piedosa vida, cujo desfecho não foi senão uma decorrência da fé e do amor a Jesus, levados às últimas consequências. É o que teremos oportunidade de contemplar nestas linhas.

Lar pobre, profundamente cristão

Nascida em 16 de outubro de 1890, na aldeia de Corinaldo, próxima do mar Adriático, a segunda filha de Luigi Goretti e Assunta Carlini foi batizada logo no dia seguinte, com o nome de Maria Teresa. A família era pobre, mas profundamente católica, e, seguindo o costume vigente naquele tempo, os pais fizeram com que Marietta — como passou a ser carinhosamente chamada — recebera o Sacramento da Crisma com apenas seis anos de idade.

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Casa de Santa Maria Goretti

Além de rezar o Rosário em família, todos os dias, os Goretti frequentavam a Igreja da Dolorosa, onde se venerava uma expressiva imagem da Virgem Santíssima com o Filho morto no colo e os olhos fixos no Céu. Diante dela, Assunta explicava aos pequenos a causa dos sofrimentos de Jesus e Maria: o pecado. Inculcava-lhes, assim, o amor à virtude e a rejeição das próprias faltas. O casal era também exemplo de devoção à Sagrada Eucaristia para os filhos.

Mudança de casa e de vida

Quando Marietta tinha tão só sete anos, o pequeno campo de Luigi Goretti tornou-se insuficiente para manter a família, e ele decidiu emigrar para Colle Gianturco, nos arredores de Paliano, distante a uns 50 quilômetros de Roma, em busca de melhores oportunidades. Todavia, ali também não tiveram êxito: apesar da dura labuta sob o sol abrasador, mal conseguiam o necessário para alimentar-se.

Dois anos depois, nova mudança se fez necessária, desta vez para Ferrieri di Conca, triste e pantanosa localidade agrícola, onde Luigi faleceu um ano depois de haverem ali chegado, com apenas 41 anos de idade, vítima da malária que grassava naqueles úmidos campos.

Marietta manifestava um caráter bondoso, dócil e humilde, e se revelou de uma maturidade precoce impressionante, diante da necessidade da mudança de vida que se lhe apresentou. Ajudou nos cuidados do pai enfermo como uma pessoa adulta e, após sua morte, assumiu os encargos do lar, para a mãe poder substituir o marido nos trabalhos do campo. Limpava a casa, buscava água na fonte, rachava lenha, cozinhava e cuidava dos quatro irmãos pequenos como uma pequena mãezinha. Quando lhes faltava o alimento, conseguia algo a custa de pequenos trabalhos, como a venda de pombos e ovos no mercado da cidade próxima, Nettuno.

Não se esquecia da educação dos irmãozinhos: repreendia-os pelas travessuras, ensinava-lhes as boas maneiras, as orações e os rudimentos do Catecismo. Apaixonada pelo Santo Rosário, rezava-o todas as noites em companhia da mãe e dos irmãos, com uma piedade edificante. E depois de todos se recolherem, recitava mais um terço em sufrágio da alma de seu falecido pai.

Mais de uma vez viu a mãe sem um centavo na bolsa e sem uma fatia de pão no armário, chorando e lamentando-se pela falta do esposo. Nessas ocasiões, com o coração compungido, a menina a abraçava e beijava, esforçando-se para não chorar também, e dizia-lhe: “Coragem, mãezinha! Coragem! Dentro em pouco estamos crescidos, depressa nos faremos todos grandes… De que tem medo? Nós a sustentaremos!… Nós a manteremos!… Deus providenciará!…”.3

Estes são alguns lampejos de sua alma angelical. Sua mãe, depois de falecida a filha, não deixava de dar testemunho de sua virtude: “Sempre, sempre, sempre obediente a minha filhinha! Nunca me deu o mais pequenino desgosto. Mesmo quando recebia alguma repreensão imerecida, por faltazinhas involuntárias, nunca se mostrou rebelde, nunca se desculpou, mas mantinha-se calma, respeitosa, sem nunca ficar amuada”.4

Malfadada sociedade com os Serenelli

Em Ferrieri, Luigi trabalhava numa propriedade do conde Lorenzo Mazzoleni, em sociedade com Giovanni Serenelli e seu filho Alessandro. Viúvo, muito dado ao vinho e sem discrição nas palavras, Giovanni não se preocupara com a educação do filho. Este, com 19 anos de idade, era um rapaz de caráter introvertido, sem qualquer formação religiosa. Nunca ia à Missa e apenas vez por outra acompanhava os Goretti na recitação do rosário, num canto da sala.

Sendo o único daquela casa que sabia ler, seu pai lhe trazia jornais com artigos de cunho anticlerical, além de novelas inconvenientes, contendo ilustrações que despertavam sua imaginação e exacerbavam-lhe os maus desejos. Ele as utilizava como decoração para as paredes de seu quarto.

Entretanto, devido à malfadada sociedade de trabalho estabelecida entre Luigi e Giovanni, as duas famílias residiam no mesmo imóvel. E Alessandro, como ele próprio confessou mais tarde, mesmo reconhecendo a candura daquela menina que o tratava como a um irmão mais velho, passou a fitá-la com olhares mal-intencionados, alimentando uma paixão que pouco tempo depois culminaria na conhecida tragédia.

Antes de morrer, Luigi — movido talvez por um mau pressentimento — havia aconselhado a esposa a voltar para Corinaldo. Ela, porém, presa pelo contrato e pelas dívidas, não tinha meios para sair da casa dividida com os Serenelli. Apesar de os quartos serem separados, a cozinha era comum e a pequena Marietta, embora com tão pouca idade, atendia às duas famílias nos afazeres domésticos.

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Primeira Comunhão

Naquela época era necessário ter doze anos para receber a Sagrada Eucaristia, e Marietta sofria por não poder alimentar-se do “Pão dos Anjos” e do “Vinho que engendra virgens”. Seu desejo aumentava a cada domingo, quando ia à Missa com a mãe e a madrinha, enfrentando quatro horas de caminhada num caminho polvorento, até a igreja mais próxima.

Às suas insistentes súplicas de poder preparar-se para fazer a Primeira Comunhão, sua pobre mãe lhe respondia que, não sabendo ler, ela não tinha como aprender a doutrina. Além disso, na situação de penúria em que se encontravam, onde conseguir dinheiro para o vestido e as outras prendas? Determinada, a menina não se deixava abater. Por fim, obteve autorização para ir certos dias à residência dos Mazzoleni, a fim de receber ensinamentos de sua piedosa governanta, e participar do Catecismo dos domingos, ministrado pelo senhor Alfredo Paliani para um grupo de jovenzinhos.

Sem prejuízo de seus afazeres domésticos, estudou e rezou durante onze meses, dando belos exemplos de virtude. Para assegurar-se da boa preparação da filha, Assunta fê-la submeter-se a um exame com o Arcipreste de Nettuno, o qual garantiu estar ela apta para receber Jesus em seu coração.

Após fazer os exercícios espirituais preparatórios, pregados por um sacerdote passionista, Marietta voltou para casa muito compenetrada e disse, em tom de voz sério: “Sabes, mamãe, o padre narrou-nos a Paixão de Jesus. E depois disse-nos que quando nós cometemos um pecado, renovamos a Paixão do Senhor”.5 Manifestava, com esta grave afirmação, o propósito de evitar a todo custo o pecado.

No dia da Primeira Comunhão, antes de sair para a igreja, estando já pronta, com o vestidinho branco que sua mãe lhe obtivera com muito esforço e um singelo véu que recebera de presente, pediu perdão de suas faltas à mãe, aos irmãos, aos Serenelli e aos vizinhos.

Era a festa de Corpus Christi de 1902, quando, não tendo ainda completado 12 anos, Maria Goretti recebia Nosso Senhor em seu coração. Quais terão sido as impressões e os colóquios divinos, nesse primeiro encontro entre Jesus Eucarístico e aquela alma inocente, disposta a nunca ofendê-Lo pelo pecado, mesmo à custa da própria vida? Só se saberá na eternidade…

A alegria e disposição de alma consequentes com o grande passo dado na vida espiritual manifestaram-se logo que Marietta chegou a casa. Abraçando a mãe, prometeu-lhe: “Mãezinha, ó minha mãezinha, serei sempre e cada vez melhor!”.6

É melhor morrer do que pecar

Os frutos da Primeira Comunhão logo se fizeram sentir. Um dia, regressou ao lar contando haver visto uma companheira da catequese conversando maliciosamente com um jovem libertino. Imediatamente fugira do local e, ainda horrorizada, afirmou: “É melhor morrer, mamãe, do que dizer palavras feias”.7

Poucas semanas se passaram e a pequena não comungara mais que duas ou três vezes, sempre aos domingos. No sábado, 5 de julho, manifestou o desejo de ir, no dia seguinte, acompanhada de uma amiga, receber novamente a Sagrada Comunhão. Estava disposta a caminhar dez quilômetros até Nettuno ou Campomorto, sob o sol inclemente e em jejum, para receber seu amado Jesus.

Seus planos foram, porém, modificados pela sanha de Alessandro. Este já a havia assediado por duas vezes e fora energicamente repelido. Ameaçou então matá-la, e não só ela, mas também a Assunta, caso falasse a alguém sobre isso. Marieta nada dissera à mãe, para não afligi-la ainda mais, mas pedia-lhe para não deixá-la sozinha em casa, e procurava estar sempre na companhia de algum dos irmãos.

Naquela tarde, todavia, a jovem ficara cosendo na sacada exterior, tendo apenas junto a si a irmã mais nova, que dormia placidamente. Alessandro arranjara um jeito de escapar-se do trabalho e, retornando para a residência, arrastou Marietta à força para dentro. Percebendo suas infames intenções, ela exprobrava-lhe a ação pecaminosa: “Não, não! Deus não quer isso! Se o fazes, irás para o inferno!…”.8

Tomado de fúria, o criminoso desferiu-lhe então 14 cruéis punhaladas. Em seguida, jogou fora a arma e foi trancar-se no seu quarto. A menina, porém, depois de um curto desmaio, conseguiu caminhar até o terraço e pedir socorro. A notícia do acontecido logo se espalhou pela vizinhança e o assassino foi preso.

Últimas horas no hospital

Marietta foi conduzida de ambulância ao hospital de Nettuno, onde a submeteram a uma dolorosa laparotomia. Foram duas horas de operação, sem anestesia! Aliás, a tentativa de salvá-la era vã, pois tinha perfurados o pericárdio, o coração, o pulmão esquerdo, o diafragma e o intestino. Os médicos não compreendiam como ainda estava viva.

Voltando da sala de cirurgias para junto de sua mãe, mostrava-se preocupada em tranquilizá-la; dizia-lhe que estava bem e perguntava pelos irmãos. A desidratação causada pela perda de sangue a fazia sofrer terrivelmente, mas a gravidade das feridas impedia-lhe de sorver uma gota d’água sequer. Nessa situação, recordar a sede padecida por Jesus no alto da Cruz tranquilizava-a e trazia-lhe consolo.

No dia seguinte teve a graça de receber a almejada Comunhão, mas em circunstâncias quão diversas das que ela imaginara! O Arcipreste de Nettuno, Dom Signori, levara-lhe o Santo Viático ao hospital, e quando lhe perguntou se sabia Quem iria receber, ela respondeu: “Sim, é aquele mesmo Jesus que dentro em pouco irei ver face a face”.9

O sacerdote recordou-lhe ter Nosso Senhor perdoado a todos no alto da Cruz e prometido ao bom ladrão que ainda naquele dia estaria com Ele no Paraíso. Perguntou-lhe, então, se perdoava seu assassino: “Sim, por amor a Jesus, perdoo-lhe. E também quero que esteja comigo no Paraíso!… Lá do Céu, rogarei pelo seu arrependimento!”.10

Com este estado de espírito recebeu os Sacramentos. Algumas horas depois, entrou no delírio da morte. Instintivamente osculava o crucifixo e a medalha de Nossa Senhora, insígnia da Associação das Filhas de Maria, na qual fora admitida já no leito de morte. Invocou muitas vezes a Virgem Maria, e por volta das três horas da tarde expirou.

Catorze lírios cintilantes

A morte de Maria Goretti foi chorada por todos os que a conheceram. Logo se espalhou a fama de sua santidade e, apenas dois anos depois, seus restos mortais foram depositados no grandioso monumento erigido em sua honra, no Santuário Pontifício de Nossa Senhora das Graças, em Nettuno.

Um dos fatos prodigiosos que contribuíram para sua canonização foi a conversão de Alessandro. Em 1910, depois de haver passado por um período de frieza e rebeldia, tendo inclusive pensado em se suicidar, o infeliz assassino foi visitado por sua vítima no cárcere de Noto. Marietta lhe apareceu vestida de branco, oferecendo-lhe lírios que, ao serem tocados por ele, se transformavam em chamas cintilantes. Eram ao todo 14… o mesmo número das punhaladas recebidas!

Assistido pelos padres passionistas, Alessandro se converteu. Cumpridos 27 anos de prisão, foi libertado e dirigiu-se a Corinaldo, onde então morava a mãe de Marietta, para pedir-lhe perdão. Imitando a atitude da filha, ela o perdoou e comungaram lado a lado, na Missa de Natal. Depois, o assassino arrependido fez-se terciário franciscano e terminou seus dias, já ancião, como servente e jardineiro num convento capuchinho.

Mensagem para a juventude do terceiro milênio

Santa Maria Goretti foi canonizada pelo Papa Pio XII, em 24 de junho de 1950. A cerimônia, da qual participou sua mãe, junto com os filhos e netos, teve de ser realizada na Praça de São Pedro, por não haver espaço suficiente para a multidão no interior da Basílica.

Em 6 de julho de 2003, concluindo as comemorações do centenário de sua morte, o Beato João Paulo II perguntava, em seu pronunciamento do Angelus: “O que diz aos jovens de hoje esta jovem frágil, mas cristãmente madura, com a sua vida e, sobretudo, com a sua morte heroica?”.

E continuava: “Marietta, assim era chamada familiarmente, recorda à juventude do terceiro milênio que a verdadeira felicidade exige coragem e espírito de sacrifício, rejeição de todo compromisso com o mal e disposição para pagar com a própria vida, mesmo com a morte, a fidelidade a Deus e aos seus Mandamentos.

“Como é atual esta mensagem! Hoje exaltam-se, muitas vezes, o prazer, o egoísmo ou até a imoralidade, em nome de falsos ideais de liberdade e de felicidade. É preciso reafirmar com clareza que a pureza do coração e do corpo deve ser defendida, porque a castidade ‘guarda’ o amor autêntico.

“Santa Maria Goretti ajude todos os jovens a experimentar a beleza e a alegria da bem-aventurança evangélica: ‘Felizes os puros de coração, porque verão a Deus’ (Mt 5, 8). A pureza de coração, como qualquer virtude, exige um treino quotidiano da vontade e uma constante disciplina interior. Pede, acima de tudo, o recurso assíduo a Deus, na oração”.11 ²

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Santa Maria Goretti, um exemplo para a Igreja e para o mundo. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano XII. N.136 (Jul., 2009); p.18.

2 SÃO PIO X, apud PAIXÃO, CP, Aurélio. Santa Maria Goretti. 10.ed. Porto: Salesianas, 1970, p.101.

3 Idem, p.29.

4 Idem, p.17.

5 NOVARESE, Luís. Santa Maria Goretti. (A sua vida anedótica contada pela mãe). 3.ed. Lisboa: União Gráfica, 1957, p.51.

6 PAIXÃO, op. cit., p.35.

7 NOVARESE, op. cit., p.69.

8 GARCÍA, CP, Pablo. Santa María Goretti. In: MARTÍNEZ PUCHE, OP, José A. Nuevo Año Cristiano. Madrid: Edibesa, 2002, v.VII, p.134.

9 PAIXÃO, op. cit., p.75.

10 Idem, p.71.

11 JOÃO PAULO II. Angelus, em Castel Gandolfo, 6/7/2003, n.1-2.

abr 102011
 

Movidos pela beleza e precisão da língua latina, alguns estudantes do Instituto Teológico São Tomás de Aquino (ITTA), localizado em São Paulo, realizaram uma iniciativa inédita no Brasil: um site escrito em latim.

Durante séculos o latim foi o idioma do mundo. Originária de um povo residente no Lácio, uma província Italiana, a língua de um povo subjugado passou a ser adotada pelos conquistadores romanos.  O Império Romano, e consequentemente o latim, se difundiu por quase toda a Europa, norte da África e parte do Oriente Médio.

Após a queda do Império dos Césares e as províncias romanas cederem lugar aos reinos germânicos, o latim foi mantido como língua da cultura. Os mosteiros cultivavam o idioma de Cícero não somente nos ofícios litúrgicos, mas também na transmissão das ciências humanas. Durante toda a Idade Média e grande parte da época moderna, o latim foi usado como língua dos professores universitários. Os grandes pensadores escreviam tratados de medicina, física, teologia e direito em latim.

Com o advento da modernidade, especialmente com a consolidação dos movimentos nacionalistas, todos os povos ocidentais passaram a adotar a língua nacional para o magistério e administração estatal. Dir-se-ia que o latim entraria para o inglório ocaso de sua longa História.

No entanto, o latim resistiu nas cátedras universitárias e permaneceu como língua oficial da Hungria até o século XIX. Hoje, o latim não se restringe a ser apenas a língua oficial do pequeno estado do Vaticano, mas seu alfabeto é usado por mais da metade da população mundial. Não há continente que não possua países que usem uma língua românica – especialmente espanhol, português e francês – como idioma oficial. O idioma é considerado por muitos autores como a principal fonte linguística da cultura ocidental.

Também a Internet é um lugar propício para a difusão do latim. Finlandeses, alemães, italianos, norte-americanos, chilenos e poloneses procuram ainda hoje conservar o latim como língua viva.

Unindo-se aos esforços dos amantes da língua de Cícero, Horácio e Virgílio, alguns professores e estudantes residentes no Brasil e membros do Instituto Teológico São Tomás de Aquino (ITTA), procuram difundir na rede mundial artigos, notícias e escritos na língua dos Padres Latinos da Igreja.