maio 232012
 

O Veni  Sancte Spiritus, que se traduz como “Vem, ó Santo Espírito”, é a sequência da Missa Solene de Pentecostes. Essa belíssima melodia foi composta no século nono, por um sábio monge beneditino, mais tarde Arcebispo de Mainz na Alemanha, chamado Rabano Mauro (750-856 d. C.) Além de ter escrito tratados sobre educação, gramática e comentário bíblicos, Rabano Mauro compôs a sequência da Missa de Pentecostes. No Martyrologium Romanum se celebra a festa de São Rabano Mauro no dia 4 de fevereiro. O Veni Sancte Spiritus também é entoado pelos Cardeais na procissão de entrada do Conclave, momento no qual fazem o escrutínio para a eleição do novo pontífice. Delicie-se com essa lindíssima peça da literatura e da arte medieval cantada na Solenidade de Pentecostes.

Veni Sancte Spiritus (Gregoriano), por Rabano Mauro

Para ouvir, clique aqui.

Veni Sancte Spiritus Gregoriano Partitura

Letra em latim e tradução do Veni Sáncte Spíritus (Gregoriano)
Com acentos para facilitar a pronúncia

Letra em latim

Tradução portuguesa

Veni Sáncte Spíritus,

Et emitte caélitus

Lúcis túae rádium.

Vinde, Espírito Santo,

e enviai do céu

um raio de Vossa luz.

Véni páter páuperum,

Véni dátor múnerum,

Véni lúmen córdium.

Vinde, pai dos pobres,

vinde dispensador dos dons,

vinde luz dos corações.

Consolátor óptime,

Dúlcis hóspes ánimae,

Dúlce refrigérium.

Consolador por excelência,

hóspede da alma,

nosso doce refrigério.

In labóre réquies,

In aéstu tempéries,

In flétu solátium.

No trabalho, sois repouso;

no ardor, sois calma;

no pranto, consolo.

O lux beatíssima,

Réple córdis íntima

Tuorum fidélium.

O luz beatíssima,

penetrai até o fundo do coração

dos que vos são fiéis.

Sine túo númine,

Nihil est in hómine,

Nihil est innóxium.

Sem vossa graça,

nada há no homem,

nada que não lhe seja nocivo.

Láva quod est sórdidum,

Ríga quod est áridum,

Sána quod est sáucium.

Lavai o que é impuro,

fecundai o que é estéril,

ao que está ferido curai.

Flécte quod est rígidum,

Fóve quod est frígidum,

Rége quod est dévium.

Dobrai o rígido,

aquecei o que é frio,

e o que se extraviou, guiai.

Da túis fidélibus,

In te confidéntibus,

Sácrum septenárium.

Dai aos que vos são fiéis

e em vós confiam

os sete dons sagrados.

Da virtútis méritum,

Da salútis éxitum,

Da perénne gáudium.

Ámen.

Dai-lhes o mérito da virtude,

a salvação no termo da vida,

a eterna felicidade.

Amém.

 

Para ter acesso a mais músicas e partituras

Arautos do Evangelho publicam coletânea de Cânticos Gregorianos em latim com tradução portuguesa

 Musica et Lingua latina

set 302011
 

Leve ao menos esta lembrança…

Agradecida ao mendigo que salvou a vida de seu filho, a boa mãe lhe deu uma Medalha Milagrosa como lembrança. O andarilho pouco tinha de piedoso, mas ficou comovido com a fé daquela mulher.
Carlos Tonelli

Para ler a versão latina (in latine)

Alegres e despreocupados, Pedro e Maurício, dois meninos de sete anos, voltam da escola pelos caminhos de uma aldeia do interior da Bélgica em fins do século XIX. Passando por uma ponte sobre o rio Meuse que circunda o vilarejo, olham para suas imagens refletidas nas águas e atiram algumas pedras para ver quem conseguia “acertar” o outro. Seguindo adiante, continuam sua brincadeira. De repente, Pedro se aproxima demais do barranco, resvala e cai no rio.

— Socorro! Socorro! — gritava, na margem, Maurício.

— Socorro! — bradava Pedro, que a custo conseguia manter a cabeça fora da água.

naufragoafogadoriosalvavidasnadadorresgaterioriverbombeiro

Entretanto, o povoado estava um pouco distante, seus gritos infantis não chegavam até lá. O socorro lhes veio de onde ninguém esperava: um mendigo que descansava embaixo da ponte atirou-se ao rio sem perda de tempo e logo retornou trazendo o menino são e salvo. Depois de acalmar as duas crianças, decidiu acompanhá-las até a aldeia.

Imagine-se o susto da mãe ao ver chegar seu filho, todo molhado, nos braços de um desconhecido maltrapilho. Posta a par do que havia acontecido, agasalhou com todo carinho o filho e logo se voltou para seu benfeitor:

— Como poderei agradecer-lhe, senhor? Sou pobre também, mas quero mostrar-lhe minha gratidão.

— Não se preocupe, senhora. Dê graças ao bom Deus, como dizia minha mãe, por neste dia eu estar descansando debaixo daquela ponte.

— Por favor, gostaria tanto de dar-lhe alguma coisa!

— Bom, já que insiste tanto, um prato de comida não me faria mal, pois há muito tempo não como algo quente.

Transbordante de gratidão, preparou ela para o mendigo o melhor almoço que pôde. Quando este, depois de larga conversa, estava por sair, ela tirou do pescoço do filho uma corrente prateada com a Medalha Milagrosa e lhe disse:

— Meu senhor, leve ao menos esta lembrança. Certa estou de que foi Nossa Senhora quem dispôs tudo, pois todos os dias peço a Ela que proteja meu filho. Tenha sempre esta medalha no pescoço, eu lhe peço. Este é o maior bem que lhe posso fazer.

O andarilho pouco tinha de piedoso, mas ficou comovido com a fé e o zelo maternal daquela mulher, pois esta lhe trouxe à lembrança a doce fisionomia de outra senhora, que há muitos anos ele não via, e que o carregou nos braços quando criança e também o recomendava diariamente à Mãezinha do Céu… Tomou, pois, a medalha, pôs no pescoço, despediu-se e nunca mais foi visto naquela aldeia.

Pedro cresceu e, sendo já um jovem vigoroso, ouviu o chamado de Jesus para abandonar todos os bens desta terra e decidiu ser missionário. Cerca de 20 anos depois do episódio narrado acima, ei-lo sacerdote, designado pelos superiores para atender os doentes pobres num hospital das Irmãs de Caridade, no interior da França.

Cruzou ele pela primeira vez os amenos jardins daquela casa religiosa e foi apresentar-se à Madre Superiora. Esta o cumprimentou com respeito e lhe disse:

— Padre, como é providencial sua chegada! Estamos com um enfermo em estado terminal e em sério risco de morrer impenitente. Por favor, veja logo o que é possível fazer por ele!

O jovem padre dirigiu-se à capela, rogando a Jesus Eucarístico que lhe inspirasse palavras adequadas para tocar aquele coração endurecido. Voltou os olhos para uma imagem da Virgem e implorou-lhe com toda confiança: “Refúgio dos Pecadores, rogai por ele!”

medalhamilagrosaarautosmiraculousmedailnossasenhoradasgracasbrasilmariamaedejesusCom passo sereno, entrou na enfermaria, onde o doente lhe deu a pior acolhida possível:

— Fora daqui! Não quero nada com padres. Fique do lado de fora, você com seus santos!

Disposto a tudo fazer para salvar aquela alma, Pe. Pedro não se deixou abalar por esse rugido de impiedade. Notando que o ímpio falava com um sotaque pouco comum na região, aproveitou-se do fato para entabular uma conversa.

— Ora veja! Você não é francês, não é verdade? Você parece ser… belga. Acertei?

— Sim, e como sabe?

— Pelo seu sotaque. Há quanto tempo está aqui?

Com isso foi se aproximando da cama do enfermo. Mostrando-lhe um sorriso nos lábios e um rosto radiante de bondade, prosseguiu:

— Sabe, sou belga também, da região do vale do rio Meuse, e brinquei muito às suas margens. E você, de onde é?

O doente mostrava-se aliviado em poder conversar um pouco com um conterrâneo. Procurando ser amável ao máximo, o sacerdote conduziu aos poucos a conversa para assuntos religiosos e, discretamente, tirou a estola da maleta.

Vendo isso, o intratável enfermo descarregou sobre ele um novo surto de imprecações, enquanto procurava erguer-se em seu leito. Ao fazer esse movimento, deixou aparecer sobre seu peito desnudo uma corrente prateada da qual pendia uma Medalha Milagrosa.

O Pe. Pedro reconheceu-a imediatamente! Ocultando a forte emoção que sentia, perguntou:

— Diga-me, quem lhe deu essa medalha?

Como resposta, ouviu do infeliz ateu a história de como ele, cerca de 20 anos antes, a ganhara de presente da mãe de um menino que ele havia salvado das águas do rio.

Sem conter alguns soluços, disse-lhe o sacerdote:

— Sou eu esse menino! Estive sempre à procura daquele mendigo. Por ele rezei todos os dias. Desde que sou padre, lembro-me dele em todas as minhas Missas. E agora o encontro aqui! Veja bem, meu amigo e benfeitor, isto é uma prova de quanto Nossa Senhora lhe quer bem. Assim como Ela, há 20 anos, encaminhou você para aquela ponte a fim de me salvar a vida, agora Ela mesma me traz aqui, como sacerdote de Cristo, para salvar sua alma.

Tocado pela graça, o mendigo derramou muitas lágrimas de arrependimento. Depois de uma sincera confissão de toda a sua longa vida de pecados, recebeu a Unção dos Enfermos, depois o Santo Viático, e expirou serenamente na paz do Senhor.

set 292011
 

Ut recorderis

Tradução portuguesa, in lusitane

Petrus et Mauritius in agro Belga saeculo XIX exeunte habitabant,  hilares et inopinantes, quippe qui septem annorum pueri erant.

Ab schola agrestibus viis olim revertebant cum ad pontem super Mosam, qui pagum eorum natalem circumibat, ambulantes pervenissent, imagines suae in undis sese reddebant;  tunc lapides eicere coeperunt ut alterius imaginem diluerent;  dum ambulare postea pergunt, lapidibus eodem modo ludunt et Petrus qui ad fluminis oram appropinquavit repente in fluenta cecidit.

‘Auxilium! Auxilium!’ Mauritius ab ora fluminis clamabat.

‘Auxilium!’ et clamabat Petrus, cui undae caput paene obruebant.

naufragoafogadoriosalvavidasnadadorresgaterioriverbombeiro

Oppidum adeo procul erat ut pueriles voces non audirentur;  auxilium vero ex eo loco, unde minime exspectabatur, cito pervenit: mendicus errans, qui sub ponte quiescebat, in undas subito se eiecit et in oram cum puero sospite tranavit; postquam ambos sedavit in pagum eosdem comitavit.

Mater valde tremuit cum natum in pannosi erronis manibus madidum videret;  cum vero veritatem audivisset, filium amplexa est et ignoto salvificatori dixit:

‘Qui possim, domine, gratias tibi agere ego quae sum pauper? sed nolim me tui beneficii immemorem videri’.

‘Beneficium, respondit,  domina neglege:  Deo gratias age -ut mea mater dicebat- quod hodie sub ponte forte quiescerem’.

‘At tibi velim aliquod offerre’.

‘Si tibi videtur, inquit, et velles, pulmentum non mihi nocebit, nam calidam escam iamdiu non accepi’.

Tum mulier gratissima pulmentum coxit quam optimum, et  post multam sermocinationem, ex filii collo catellam cum Virginis nomismate sumpsit, mendicoque exituro, dixit:

‘Bone vir, mei hanc ut recorderis imaginem accipe,  neque dubito quin ipsa Virgo tibi, ubicumque eris, auxilium datura sit, nam ipsa quottidie pro meo filio tuendo precor;  te rogo ut hoc nomisma a collo pendens semper geras;  id est maximum bonum quod tibi dare possum’.

Erroni fides ac pietas omnino deerat; sed cum videret mulieris fiduciam et maternam curam, commotus est;  atque alterius mulieris faciem, quam memoria tenebat, sub oculis habere credidit; illa ipsum brachiis puerum olim sustinebat Matrique Caelesti quottidie quoque commendabat;  hanc tamen multos annos iam amiserat; itaque nomisma sumpsit, ad collum alligavit, omnes valedixit;  et in terras longinquas profectus adeo est ut a pueris reliquisque oppidanis nunquam postea videretur.

Petrus creverat et cum iuvenis factus esset, se a Deo sic vocatum sensit, ut, bonis terrenis neglectis,  evangelii praeconius sive missionarius fieret.

medalhamilagrosaarautosmiraculousmedailnossasenhoradasgracasbrasilmariamaedejesusAnnis fere viginti transactis, Petrus sacerdos factus est, cui ab antistite commissum est pauperum aegrotantium animas curare in nosocomio, quod monachae, quae Sorores Charitatis vocantur, in media Francogallia regebant.

Postquam per monachalium aedium hortum transiit, apud praepositam matrem se praebuit; haec reverenter eum salutavit et dixit:

‘Quam oportune, pater, advenisti:  aegrotus quidam mox est moriturus neque ullam paenitentiam agere velit;  cura, quaeso, ut ei auxilium feras’.

Iuvenis sacerdos capellam adiit ut Iesum Eucharisticum rogaret verba opportuna duro aegroti cordi idonea;  deinde oculos ad Virginis imaginem levavit et precatus est: Refugium Peccatorum ora pro eo’.

Tranquillo gradu in valetudinarium ingressus, ab aegrotante acceptus est pessime.

‘Abi sane; procul a me! tu tuique sancti foras!’.

Pater Petrus, ut animam istam sospitem haberet, omnia patienda esse statuit; neque se ab impietate vinci sivit; et cum aegroti loquellam in ea regione inassuetam esse comperisset, ansam sumpsit ad colloquendum.

‘Francogallicus non, amice, videris, potius te forsitan esse Belgam credo, nonne?’.

“Ita est, inquit aegrotus;  quomodo novisti?’.

‘A tua nempe loquella;  quamdiu hic manes?’.

Et paulatim ad aegroti lectum appropinquavit et subridens benigneque agens pergit dicere:

‘Fit ut ego et Belga sum; me puero, in Mosae valle habitabam,  in fluminis oris valde ludebam;  et tu unde venis?’.

Aegrotus leniri videbatur, quod cum concive sermocinaretur;  tum sacerdos comiter agens in res sacras sermonem adduxit, et stolam ex sacculo caute extraxit. Quam cum aegrotus vidisset, aspera duraque iterum verba dicere coepit, dum in lecto assidere intendit;  cum id contendisset,  argentea catella super nudum pectus cum numismate patuit.

Pater Petrus id statim agnovit et commotionem, qua afficiebatur, continens rogavit:

‘Dic mihi quis tibi hoc nomisma dedit’.

Pro responso audivit ab infelici atheo historiam de nomismate viginti annis abhinc accepto de cuiusdam matris manibus, quod filium a Mosae aquis ipse servaverit.

Valde commotus sacerdos dixit:

‘Ego sum ille puer; mendicumque illum continenter diuturno tempore quaesivi ut gratias referrem; pro eo cottidie precatus sum ex eo die quo sacerdos sum factus;  illius memini cum sacram dixi missam,  et nunc te hic invenio;  nonne intellegis quantum amoris tibi Sancta Virgo hodie ostenderit? Ipsa te sub pontem annis viginti abhinc impulit  itaque nunc me Cristi sacerdotem ad te adduxit, ut concivis et salvificatoris animam fierem salvam’.

A Dei gratia tactus, mendicus lacrimas paenitens effudit; postquam singula diuturnae vitae peccata confessus est, Unctionem Infirmorum et Sanctum Viaticum accepit, atque animo quieto diem supremum obiit.

HERALDOS DEL EVANGELIO, Nº22, Mayo de 2005

Scripsit Carolus Tonelli

Latine interpretatus est Paulus Kangiser

set 012011
 

Perseguições aos primeiros cristãos

Ensaio do Pe. José Arnóbio Glavan, EP

Como vimos, as perseguições movidas pelo Império contra os cristãos, tinham como motivo, a insegurança que o cristianismo produzia ao paganismo, e de modo particular, no culto divino prestado aos imperadores, no que viam estes últimos, seu próprio poder político ameaçado. Não podendo, obviamente, declinar a verdadeira causa, encontravam-se na contingência de apresentar ao povo falsas razões para tal procedimento. Assacavam, assim, contra os cristãos acusações várias: ateísmo, por recusarem prestar culto aos deuses; causa de catástrofes públicas por descontentarem as divindades; banquetes licenciosos nos quais se praticava o canibalismo, numa alusão à Sagrada Eucaristia; etc.

Imperador Trajano

Imperador Trajano

Como vimos essas perseguições tiveram inicio com Nero, no ano de 64dC. Desta data até o começo do quarto século seguiram-se —  com crescente intensidade mas também com longos períodos de calmaria e relativa paz — várias grandes investidas.

Podemos dividir tal história em duas épocas: a primeira que vai de Nero (54-69) ao imperador Felipe, o árabe (244-249), e a segunda, de Décio (249-251) a Constantino Magno que, em 313, pelo edito de Milão põe fim, definitivamente, às perseguições.

Tratamos acima das perseguições de Nero e Domiciano,  que se sucederam no trono imperial com o intervalo pacífico de dois imperadores: Vespasiano e Tito o antigo general da tomada de Jerusalém.

A Domiciano sucedeu Trajano  (98-117). Sob seu governo foi elaborado, para uso das autoridades militares do Império, um regulamento com o qual se pretendia dar aparência de legalidade jurídica à opressão aos seguidores de Jesus Cristo. Previa-se que estes não deveriam ser objeto de busca e captura sumárias, nem valeriam, contra eles, denúncias anônimas. Também seriam “benevolamente” agraciados com a liberdade no caso de renegarem a fé. É deste tempo o famoso martírio do grande apologeta Santo Inácio de Antioquia.

Após as sangrentas perseguições de Marco Aurélio (161-180) sob cujo governo deu-se, provavelmente, o martírio de santa Cecília, e de Septimo Severo (193-211), encerra-se a primeira época de perseguições e segue-se quase meio século de relativa tranqüilidade.

A Segunda época abre-se com o imperador Décio e vai até o edito de liberdade concedido por Constantino I.

Décio (249-251) preocupado com o paulatino enfraquecimento do Império, e do culto pagão oficial, resolveu reforçá-lo, decretando a obrigatoriedade para todos os cidadãos de manifestar por um ato público, sua submissão aos deuses. Para testemunho disso, deveriam oferecer publicamente um sacrifício às divindades, mediante o qual receberiam um libellus (certificado) do cumprimento da lei. As penas de prisão, confisco de bens, escravidão e mesmo a de morte, eram aplicáveis aos refratários. É este o fato novo, que justifica a classificação de uma nova etapa na história das perseguições e que de certo modo altera, fundamentalmente, os procedimentos legais iniciados por Trajano. De fato, para efeito do cumprimento dessa lei, os cristãos podiam já ser procurados e eram estes, naturalmente, os mais visados. Data deste período o glorioso martírio de Santa Águeda.

O resultado foi que a perseguição se intensificou imensamente. Cristãos houve, que diante de ameaças de atrozes sofrimentos, vacilaram acabando por ceder às exigências imperiais; são os lapsi (caídos). Numerosos dentre eles, entretanto, se arrependiam e voltavam implorando o perdão, e não poucos lavavam suas faltas no sangue, pelo martírio que então corajosamente enfrentavam. A Igreja se enriqueceu,  assim, com uma multidão incontável de gloriosos mártires, de ambos os sexos e todas as idades, que povoaram o firmamento da História, e fecundaram, como nunca, a Santa Igreja de Deus. Tal fato provocou o dito célebre de Tertuliano de que esse sangue é semens Christianorum [semente de cristãos](1). Sucederam-se os imperadores Treboniano Galo (251-253), sob cujo governo houve relativa paz, e Valeriano (253-260), que recrudesceu as perseguições. Entretanto, quem se excedeu a todos na violência foi Diocleciano (284-305), que promoveu a última e a mais sangrenta das perseguições.

Imperium_Mapa_Romao_Imperio_Roma_deroma_mapa_Vaticano_MuseusComeçou por reorganizar o império, dividindo-o em duas unidades políticas, instituindo assim  a diarquia (dois governos): a do Oriente, cujo governo reservou a si, e a do Ocidente confiada a Maximiano, soldado rude mas extraordinariamente enérgico. Completou, posteriormente tal reforma, constituindo mais duas unidades e nomeando mais dois imperadores para as governarem, gozando estes, entretanto, de honras inferiores. O título de César Augusto era atribuído aos dois primeiros enquanto aos outros se dava, simplesmente, o de César. Estava instituída assim a chamada   tetrarquia (quatro governos), com dois Augustos e dois Césares, sendo que aos Augustos deveriam suceder, como herdeiros, os Césares, e novos Césares serem nomeados.

Quando Diocleciano instituiu a tetrarquia, havia já trinta anos que os cristãos estavam em paz.  Por toda parte eles se multiplicavam e mesmo entre os funcionários do Império, magistrados, soldados, numerosos eram os cristãos. Dizia-se que as próprias esposa e filha, de Diocleciano, Prisca e Valéria, acalentavam simpatia para com  a religião de Cristo, e até mesmo — certamente exagero — que o César Constâncio Cloro, estava prestes a se converter.

Certo é que por toda parte o paganismo deixava entrever sua ruína próxima. O famoso dito de Tertuliano hipoteticamente dirigido ao Imperador, em começos do III século, é sintomático neste sentido: “Não somos senão de ontem, mas enchemos vossas cidades; vossas casas vossas praças; o Exército e o Conselho Real; os campos e as tribos, vossos palácios o Senado e o Fórum. Se nós nos retirarmos, sereis esmagados por vossa imensa solidão.

Ao que parece foi o César Galério, inimigo do partido de Constâncio Cloro simpático ao Cristianismo, que alertou Diocleciano para esta situação e o induziu a mover a mais atroz de todas as perseguições, desencadeada no ano de 295, e por cerca de dez anos fez correr o sangue de milhares de mártires entre eles Santa Inês, São Sebastião, Santa Catarina de Alexandria, São Brás, Santos Cosme e Damião, entre muitíssimos outros.

Bibliografia

(1) Plures efficimur quoties metimur a vobis, semens est sanguis christianorum (quanto mais somos dizimados por vós tanto mais crescemos, o sangue dos cristãos é semente), in Tertuliano, Apologeticum, 50

ago 162011
 

A Arquidiocese de Boston abriu em 2 de junho a causa de beatificação do Pe. José Luis Múzquiz, sacerdote do Opus Dei que iniciou as atividades da instituição nos Estados Unidos e trabalhou por muitos anos nessa cidade norte-americana.

“Todos os cristãos são chamados a ser santos e estamos profundamente gratos à Arquidiocese de Boston por esse esforço para constatar se o Pe. Múzquiz viveu realmente uma vida santa”, declarou ao jornal Catholic News Service, Brian Finnerty, porta-voz da Obra.

José Luis Múzquiz de Miguel nasceu em Badajoz, Espanha, em 1912 e passou a pertencer ao Opus Dei em janeiro de 1940. Até ser ordenado sacerdote, em 25 de junho de 1944, trabalhou como engenheiro civil na construção de pontes e estações ferroviárias. Doutor em Engenharia, História e Direito Canônico, foi um dos três primeiros discípulos de São Josemaría em receber as sagradas ordens.

Em 1949 foi enviado pelo fundador para os Estados Unidos, onde estabeleceu centros da Obra em Chicago, Washington, Boston e outras cidades. Também lançou as bases para o trabalho da instituição no Canadá, Japão e Venezuela. Seu afável carinho, seu intenso trabalho e sua humilde simplicidade proporcionaram-lhe fama de santidade entre todos quantos o conheceram.

Grand Canyon du Verdon -2

ago 132011
 

Fruto de milhares de súplicas

“Pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”.

Em 1º de novembro de 1950 — época em que as viagens eram muito mais lentas e penosas do que hoje — a Praça de São Pedro encheu-se de fiéis para assistir à proclamação do dogma da gloriosa Assunção de Maria em corpo e alma aos Céus.

Correspondia esse ato a um clamor da Igreja inteira, relatado e analisado de forma excelente na Constituição Apostólica Munificentíssimus Deus, instrumento usado por Pio XII para declarar essa verdade de Fé.

Decorridas seis décadas dessa histórica data, transcrevemos abaixo alguns tópicos desse documento pontifício, nos quais parece ouvir-se ainda o pedido uníssono de pastores e fiéis, implorando ao Santo Padre a proclamação do quarto dogma mariano.

Nossa Senhora do Brasil (São Paulo Capital)

Nossa Senhora do Brasil (São Paulo Capital)

Eis as palavras de Pio XII:

Quando se definiu solenemente que a Virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o Supremo Magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da Virgem Maria ao Céu.

De fato, sucedeu que não só os simples fiéis, mas até aqueles que, em certo modo, personificam as nações ou as províncias eclesiásticas, e mesmo não poucos Padres do Concílio Vaticano, pediram instantemente à Sé Apostólica esta definição.

Com o decurso do tempo essas petições e votos não diminuíram, antes foram aumentando de dia para dia em número e insistência. Com esse fim fizeram-se cruzadas de orações; muitos e exímios teólogos intensificaram com ardor os seus estudos sobre este ponto, quer em privado, quer nas universidades eclesiásticas ou nas outras escolas de disciplinas sagradas; celebraram-se em muitas partes congressos marianos nacionais e internacionais. Todos esses estudos e investigações mostraram com maior realce que no depósito da fé cristã, confiado à Igreja, também se encontrava a assunção da Virgem Maria ao Céu. E de ordinário a consequência foi enviarem súplicas em que se pedia instantemente a definição solene desta verdade.

Acompanhavam os fiéis nessa piedosa insistência os seus sagrados pastores, os quais dirigiram a esta cadeira de São Pedro semelhantes petições em número muito considerável. Quando fomos elevado ao Sumo Pontificado, já tinham sido apresentadas a esta Sé Apostólica muitos milhares dessas súplicas, vindas de todas as partes do mundo e de todas as classes de pessoas: dos nossos amados filhos Cardeais do Sacro Colégio, dos nossos veneráveis irmãos Arcebispos e Bispos, das dioceses e das paróquias. […]

Inequívocas demonstrações da fé na Assunção

Patenteiam inequivocamente esta mesma fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da Assunção de Nossa Senhora, e as imagens neles expostas à veneração dos fiéis, que mostram aos olhos de todos este singular triunfo da Santíssima Virgem. Muitas cidades, dioceses e regiões foram consagradas ao especial patrocínio e proteção da Assunção da Mãe de Deus. Do mesmo modo, com aprovação da Igreja, fundaram-se Institutos religiosos com o nome deste privilégio. Nem se deve passar em silêncio que no rosário de Nossa Senhora, cuja reza tanto recomenda esta Sé Apostólica, há um mistério proposto à nossa meditação, que, como todos sabem, é consagrado à Assunção da Santíssima Virgem ao Céu.

De modo ainda mais universal e esplendoroso se manifesta esta fé dos pastores e dos fiéis, com a festa litúrgica da Assunção, celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente e no Ocidente. Nunca os santos padres e doutores da Igreja deixaram de haurir luz nesta solenidade, pois, como todos sabem, a sagrada liturgia, “sendo também profissão das verdades católicas, e estando sujeita ao Supremo Magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pequeno valor para determinar algum ponto da doutrina cristã”. […]

Definição solene do dogma

Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado a luz do Espírito de verdade, para glória de Deus onipotente que à Virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta Mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados Apóstolos São Pedro e São Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial.

(Excertos da Carta Apostólica Munificentissimus Deus, 1/11/1950)

Dormição de Maria, Museu do Prado (Espanha)

Dormição de Maria, Museu do Prado (Espanha)

ago 102011
 

Os Padres Latinos

Autor: Ronaldo Baccelli

Nos primórdios da Igreja, o grego era a sua língua oficial. Quase todo o Novo Testamento, bem como os escritos dos Padres Apostólicos e da maior parte dos Apologistas, foram feitos em grego. Mas aos poucos, o latim foi tomando a dianteira, até por fim tornar-se a língua oficial.

Minúcio Félix

É de Minúcio Félix, um advogado romano, o diálogo apologético em latim denominado Otávio (escrito por volta de 197). Essa obra foi a única escrita em latim no tempo das perseguições.

O genial Tertuliano

Figura de relevo, no mundo latino, é Quintus Septimius Florens Tertullianus, nascido em Cartago por volta do ano 160, filho de um centurião, pagão com excelente formação intelectual, dominando o grego e possuidor de grandes conhecimentos jurídicos e de retórica. Depois de exercer a jurisprudência em Roma, retornou para sua cidade de origem por volta de 195, já como cristão. Mas em torno do ano 207 rompeu com a Igreja e aderiu ao montanismo. Morreu provavelmente depois ano 220.

Por do sol_mar_poente_aurora_beleza

Conhecendo na perfeição o latim, Tertuliano foi o primeiro a usar o termo Trinitas para designar a Trindade. Expôs também a tese de que o Pai e o Filho eram da mesma substância, tendo-se assim antecipado de um século ao Símbolo de Nicéia.

Suas principais obras foram: Ad nationes, o Apologeticum (aos governadores das províncias do Império – uma apologia que defende os cristãos de acusações políticas tais como o crime de lesa-majestade e a negação dos deuses imperiais; sua argumentação é do ponto de vista jurídico), Adversus Iudaeos, De praescriptione haereticorum, Adversus Marcionem (contra a gnose de Marcião), Adversus Valentinianos (contra a gnose de Valentino), Scorpiace, De carne Christi (contra o docetismo dos gnósticos), Adversus Praxean (trata-se da exposição mais clara, antes de Nicéia, acerca da doutrina da Trindade, contra o patripassiano Práxeas), De baptismo, De anima (obra anti-gnóstica), Ad martyres, De paenitentia, Ad uxorum

Tertuliano fala das duas naturezas e da única pessoa de Jesus Cristo. Ensina que o primado e o poder das chaves foram dados a S. Pedro (fala da morte de S. Pedro e S. Paulo em Roma). Enquanto era católico, ensinava que a Igreja tinha poder de perdoar os pecados, mas uma só vez. Fazendo eco à Didaqué, para ele a Missa é o cumprimento da profecia de Malaquias (Ml 1, 10s), sacrifício verdadeiro oferecido a Deus, e a Eucaristia é o Corpo e o Sangue de Cristo. Também admite um estado de purificação póstumo, no qual todos, menos os mártires, permanecem até o dia do Juízo. As orações dos vivos, segundo ele, podem confortar os que se encontram no Hades. Era milenarista.

Contra os hereges, Tertuliano ensina que apenas a Igreja possui a fé. A ela cabe a reta interpretação das Escrituras, à luz da Tradição. A doutrina conservada nas Igrejas apostólicas estabelece as verdades que devem ser cridas por todos os fiéis. É inútil, segundo ele, discutir com os hereges servindo-se das Escrituras pois eles a distorcem.

Do período montanista temos alguns escritos de caráter ascético, como o De exhortatione castitatis, em que exorta um amigo viúvo a não contrair novas núpcias, De corona (em que condena o exercício das funções militares por cristãos e refere de passagem o costume de se fazer o sinal da cruz), De pudicitia (onde, contrariamente ao que defendia quando católico, nega à Igreja o poder de perdoar pecados).

Sua atitude diante da filosofia pagã é essencialmente negativa. Acredita na possibilidade de uma demonstração racional da existência de Deus e da imortalidade da alma e afirma que a especulação filosófica só é útil enquanto concorda com o Evangelho.

Ao contrário do consenso geral da Tradição cristã, Tertuliano negava a virgindade perpétua de Maria.

São Cipriano de Cartago

Thascius Cecilius Cyprianus nasceu em Cartago (entre 200-210) de uma família rica e pagã. Recebeu o batismo em 246, sendo sagrado, dois ou três anos depois, bispo de sua cidade.

A perseguição de Décio (250) interrompeu suas atividades pastorais, uma vez que foi forçado a se esconder.

Em sua época, muitos apóstatas, os assim chamados lapsi começaram a ser facilmente readmitidos na Igreja, o que deu origem a um cisma. Em 251, S. Cipriano voltou para Cartago e num sínodo excomungou os chefes da dissidência laxista, determinando que os apóstatas passassem por severas penitências antes de reingressarem na comunidade.

A peste que atingiu o Império em 252 provocou novos sofrimentos e perseguições na África.

Nos últimos anos de sua vida, ocupou-se com a questão do batismo dos hereges. Cipriano considerava inválido o batismo ministrado por hereges, e mesmo depois da reprovação do papa Estevão, manteve seu ponto de vista.

Foi decapitado no dia 14 de setembro de 258, em Cartago, reinando Valeriano. O martírio de sangue o redimiu certamente de seu erro.

S. Cipriano compôs as seguintes obras: De ecclesia unitate (c. 251, na qual apoia o papa Cornélio contra Novaciano), De lapsis, De habitu virginum, De mortalitate.

Apregoava a doutrina de que a unidade da Igreja é garantida pela união de todos com o bispo. Ficaram famosas diversas máximas suas:

“Salus extra ecclesiam non est” ou seja, “não há salvação fora da Igreja”;

v  “Quem abandona a sede de Pedro, sobre a qual está fundada a Igreja, como pode afirmar que está na verdadeira Igreja?”;

v  “Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe”.

São Pedro_Saint_Peter_BasilicaSPietro_tramonto_Vatican_City

Ensinava que uma tradição só é válida quando se apóia na “tradição evangélica e apostólica”, ou seja, aquela tradição que provém da “autoridade do Senhor e do Evangelho, das prescrições e das epístolas dos apóstolos”. Afirmava que os recém-nascidos deviam receber o quanto antes o batismo e a eucaristia, e que a missa é a repetição do sacrifício de Jesus na Cruz. Ensinava ainda que a penitência consiste na confissão pública dos pecados e na expiação, e que todos os justos defuntos (inclusive os não-mártires) recebem sua recompensa imediatamente após a morte; segundo ele, o estado intermediário no Hades se aplica somente aos penitentes.

Comodiano, Vitorino de Petau, Arnóbio de Sica e Lactâncio são outros grandes representantes da literatura cristã em latim no século III e no início do século IV.

Os Padres Latinos

Nos primórdios da Igreja, o grego era a sua língua oficial. Quase todo o Novo Testamento, bem como os escritos dos Padres Apostólicos e da maior parte dos Apologistas, foram feitos em grego. Mas aos poucos, o latim foi tomando a dianteira, até por fim tornar-se a língua oficial.

Minúcio Félix

É de Minúcio Félix, um advogado romano, o diálogo apologético em latim denominado Otávio (escrito por volta de 197). Essa obra foi a única escrita em latim no tempo das perseguições.

O genial Tertuliano

Figura de relevo, no mundo latino, é Quintus Septimius Florens Tertullianus, nascido em Cartago por volta do ano 160, filho de um centurião, pagão com excelente formação intelectual, dominando o grego e possuidor de grandes conhecimentos jurídicos e de retórica. Depois de exercer a jurisprudência em Roma, retornou para sua cidade de origem por volta de 195, já como cristão. Mas em torno do ano 207 rompeu com a Igreja e aderiu ao montanismo. Morreu provavelmente depois ano 220.

Conhecendo na perfeição o latim, Tertuliano foi o primeiro a usar o termo Trinitas para designar a Trindade. Expôs também a tese de que o Pai e o Filho eram da mesma substância, tendo-se assim antecipado de um século ao Símbolo de Nicéia.

Suas principais obras foram: Ad nationes, o Apologeticum (aos governadores das províncias do Império – uma apologia que defende os cristãos de acusações políticas tais como o crime de lesa-majestade e a negação dos deuses imperiais; sua argumentação é do ponto de vista jurídico), Adversus Iudaeos, De praescriptione haereticorum, Adversus Marcionem (contra a gnose de Marcião), Adversus Valentinianos (contra a gnose de Valentino), Scorpiace, De carne Christi (contra o docetismo dos gnósticos), Adversus Praxean (trata-se da exposição mais clara, antes de Nicéia, acerca da doutrina da Trindade, contra o patripassiano Práxeas), De baptismo, De anima (obra anti-gnóstica), Ad martyres, De paenitentia, Ad uxorum

Tertuliano fala das duas naturezas e da única pessoa de Jesus Cristo. Ensina que o primado e o poder das chaves foram dados a S. Pedro (fala da morte de S. Pedro e S. Paulo em Roma). Enquanto era católico, ensinava que a Igreja tinha poder de perdoar os pecados, mas uma só vez. Fazendo eco à Didaqué, para ele a Missa é o cumprimento da profecia de Malaquias (Ml 1, 10s), sacrifício verdadeiro oferecido a Deus, e a Eucaristia é o Corpo e o Sangue de Cristo. Também admite um estado de purificação póstumo, no qual todos, menos os mártires, permanecem até o dia do Juízo. As orações dos vivos, segundo ele, podem confortar os que se encontram no Hades. Era milenarista.

Contra os hereges, Tertuliano ensina que apenas a Igreja possui a fé. A ela cabe a reta interpretação das Escrituras, à luz da Tradição. A doutrina conservada nas Igrejas apostólicas estabelece as verdades que devem ser cridas por todos os fiéis. É inútil, segundo ele, discutir com os hereges servindo-se das Escrituras pois eles a distorcem.

Do período montanista temos alguns escritos de caráter ascético, como o De exhortatione castitatis, em que exorta um amigo viúvo a não contrair novas núpcias, De corona (em que condena o exercício das funções militares por cristãos e refere de passagem o costume de se fazer o sinal da cruz), De pudicitia (onde, contrariamente ao que defendia quando católico, nega à Igreja o poder de perdoar pecados).

Sua atitude diante da filosofia pagã é essencialmente negativa. Acredita na possibilidade de uma demonstração racional da existência de Deus e da imortalidade da alma e afirma que a especulação filosófica só é útil enquanto concorda com o Evangelho.

Ao contrário do consenso geral da Tradição cristã, Tertuliano negava a virgindade perpétua de Maria.

São Cipriano de Cartago

Thascius Cecilius Cyprianus nasceu em Cartago (entre 200-210) de uma família rica e pagã. Recebeu o batismo em 246, sendo sagrado, dois ou três anos depois, bispo de sua cidade.

A perseguição de Décio (250) interrompeu suas atividades pastorais, uma vez que foi forçado a se esconder.

Em sua época, muitos apóstatas, os assim chamados lapsi começaram a ser facilmente readmitidos na Igreja, o que deu origem a um cisma. Em 251, S. Cipriano voltou para Cartago e num sínodo excomungou os chefes da dissidência laxista, determinando que os apóstatas passassem por severas penitências antes de reingressarem na comunidade.

A peste que atingiu o Império em 252 provocou novos sofrimentos e perseguições na África.

Nos últimos anos de sua vida, ocupou-se com a questão do batismo dos hereges. Cipriano considerava inválido o batismo ministrado por hereges, e mesmo depois da reprovação do papa Estevão, manteve seu ponto de vista.

Foi decapitado no dia 14 de setembro de 258, em Cartago, reinando Valeriano. O martírio de sangue o redimiu certamente de seu erro.

S. Cipriano compôs as seguintes obras: De ecclesia unitate (c. 251, na qual apoia o papa Cornélio contra Novaciano), De lapsis, De habitu virginum, De mortalitate.

Apregoava a doutrina de que a unidade da Igreja é garantida pela união de todos com o bispo. Ficaram famosas diversas máximas suas:

v “Salus extra ecclesiam non est” ou seja, “não há salvação fora da Igreja”;

v “Quem abandona a sede de Pedro, sobre a qual está fundada a Igreja, como pode afirmar que está na verdadeira Igreja?”;

v “Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe”.

Ensinava que uma tradição só é válida quando se apóia na “tradição evangélica e apostólica”, ou seja, aquela tradição que provém da “autoridade do Senhor e do Evangelho, das prescrições e das epístolas dos apóstolos”. Afirmava que os recém-nascidos deviam receber o quanto antes o batismo e a eucaristia, e que a missa é a repetição do sacrifício de Jesus na Cruz. Ensinava ainda que a pen

Os Padres Latinos

Nos primórdios da Igreja, o grego era a sua língua oficial. Quase todo o Novo Testamento, bem como os escritos dos Padres Apostólicos e da maior parte dos Apologistas, foram feitos em grego. Mas aos poucos, o latim foi tomando a dianteira, até por fim tornar-se a língua oficial.

Minúcio Félix

É de Minúcio Félix, um advogado romano, o diálogo apologético em latim denominado Otávio (escrito por volta de 197). Essa obra foi a única escrita em latim no tempo das perseguições.

O genial Tertuliano

Figura de relevo, no mundo latino, é Quintus Septimius Florens Tertullianus, nascido em Cartago por volta do ano 160, filho de um centurião, pagão com excelente formação intelectual, dominando o grego e possuidor de grandes conhecimentos jurídicos e de retórica. Depois de exercer a jurisprudência em Roma, retornou para sua cidade de origem por volta de 195, já como cristão. Mas em torno do ano 207 rompeu com a Igreja e aderiu ao montanismo. Morreu provavelmente depois ano 220.

Conhecendo na perfeição o latim, Tertuliano foi o primeiro a usar o termo Trinitas para designar a Trindade. Expôs também a tese de que o Pai e o Filho eram da mesma substância, tendo-se assim antecipado de um século ao Símbolo de Nicéia.

Suas principais obras foram: Ad nationes, o Apologeticum (aos governadores das províncias do Império – uma apologia que defende os cristãos de acusações políticas tais como o crime de lesa-majestade e a negação dos deuses imperiais; sua argumentação é do ponto de vista jurídico), Adversus Iudaeos, De praescriptione haereticorum, Adversus Marcionem (contra a gnose de Marcião), Adversus Valentinianos (contra a gnose de Valentino), Scorpiace, De carne Christi (contra o docetismo dos gnósticos), Adversus Praxean (trata-se da exposição mais clara, antes de Nicéia, acerca da doutrina da Trindade, contra o patripassiano Práxeas), De baptismo, De anima (obra anti-gnóstica), Ad martyres, De paenitentia, Ad uxorum

Tertuliano fala das duas naturezas e da única pessoa de Jesus Cristo. Ensina que o primado e o poder das chaves foram dados a S. Pedro (fala da morte de S. Pedro e S. Paulo em Roma). Enquanto era católico, ensinava que a Igreja tinha poder de perdoar os pecados, mas uma só vez. Fazendo eco à Didaqué, para ele a Missa é o cumprimento da profecia de Malaquias (Ml 1, 10s), sacrifício verdadeiro oferecido a Deus, e a Eucaristia é o Corpo e o Sangue de Cristo. Também admite um estado de purificação póstumo, no qual todos, menos os mártires, permanecem até o dia do Juízo. As orações dos vivos, segundo ele, podem confortar os que se encontram no Hades. Era milenarista.

Contra os hereges, Tertuliano ensina que apenas a Igreja possui a fé. A ela cabe a reta interpretação das Escrituras, à luz da Tradição. A doutrina conservada nas Igrejas apostólicas estabelece as verdades que devem ser cridas por todos os fiéis. É inútil, segundo ele, discutir com os hereges servindo-se das Escrituras pois eles a distorcem.

Do período montanista temos alguns escritos de caráter ascético, como o De exhortatione castitatis, em que exorta um amigo viúvo a não contrair novas núpcias, De corona (em que condena o exercício das funções militares por cristãos e refere de passagem o costume de se fazer o sinal da cruz), De pudicitia (onde, contrariamente ao que defendia quando católico, nega à Igreja o poder de perdoar pecados).

Sua atitude diante da filosofia pagã é essencialmente negativa. Acredita na possibilidade de uma demonstração racional da existência de Deus e da imortalidade da alma e afirma que a especulação filosófica só é útil enquanto concorda com o Evangelho.

Ao contrário do consenso geral da Tradição cristã, Tertuliano negava a virgindade perpétua de Maria.

São Cipriano de Cartago

Thascius Cecilius Cyprianus nasceu em Cartago (entre 200-210) de uma família rica e pagã. Recebeu o batismo em 246, sendo sagrado, dois ou três anos depois, bispo de sua cidade.

A perseguição de Décio (250) interrompeu suas atividades pastorais, uma vez que foi forçado a se esconder.

Em sua época, muitos apóstatas, os assim chamados lapsi começaram a ser facilmente readmitidos na Igreja, o que deu origem a um cisma. Em 251, S. Cipriano voltou para Cartago e num sínodo excomungou os chefes da dissidência laxista, determinando que os apóstatas passassem por severas penitências antes de reingressarem na comunidade.

A peste que atingiu o Império em 252 provocou novos sofrimentos e perseguições na África.

Nos últimos anos de sua vida, ocupou-se com a questão do batismo dos hereges. Cipriano considerava inválido o batismo ministrado por hereges, e mesmo depois da reprovação do papa Estevão, manteve seu ponto de vista.

Foi decapitado no dia 14 de setembro de 258, em Cartago, reinando Valeriano. O martírio de sangue o redimiu certamente de seu erro.

S. Cipriano compôs as seguintes obras: De ecclesia unitate (c. 251, na qual apoia o papa Cornélio contra Novaciano), De lapsis, De habitu virginum, De mortalitate.

Apregoava a doutrina de que a unidade da Igreja é garantida pela união de todos com o bispo. Ficaram famosas diversas máximas suas:

“Salus extra ecclesiam non est” ou seja, “não há salvação fora da Igreja”;

v  “Quem abandona a sede de Pedro, sobre a qual está fundada a Igreja, como pode afirmar que está na verdadeira Igreja?”;

v  “Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe”.

Ensinava que uma tradição só é válida quando se apóia na “tradição evangélica e apostólica”, ou seja, aquela tradição que provém da “autoridade do Senhor e do Evangelho, das prescrições e das epístolas dos apóstolos”. Afirmava que os recém-nascidos deviam receber o quanto antes o batismo e a eucaristia, e que a missa é a repetição do sacrifício de Jesus na Cruz. Ensinava ainda que a penitência consiste na confissão pública dos pecados e na expiação, e que todos os justos defuntos (inclusive os não-mártires) recebem sua recompensa imediatamente após a morte; segundo ele, o estado intermediário no Hades se aplica somente aos penitentes.

Comodiano, Vitorino de Petau, Arnóbio de Sica e Lactâncio são outros grandes representantes da literatura cristã em latim no século III e no início do século IV.

itência consiste na confissão pública dos pecados e na expiação, e que todos os justos defuntos (inclusive os não-mártires) recebem sua recompensa imediatamente após a morte; segundo ele, o estado intermediário no Hades se aplica somente aos penitentes.

Comodiano, Vitorino de Petau, Arnóbio de Sica e Lactâncio são outros grandes representantes da literatura cristã em latim no século III e no início do século IV.

jul 242011
 

Os Quarenta
Mártires do Brasil

Inácio de Azevedo, com a sua jovem falange, alimentava o ardente desejo de ver um Brasil florescente de virtudes. Entretanto, Deus o chamou, como se dissesse: “Inácio, não verás mais o Brasil. Vem a Mim!”

Quarenta_martires_inacio_azevedo

Pe. Santiago Ignacio Morazzani Arráiz, EP

Corria a segunda metade do século XVI. A imensa vastidão do Novo Mundo, com seus milhões de almas à espera da luz do Evangelho, desafiava a intrepidez dos missionários. E as ondas do Atlântico, ao acariciarem as praias e rochedos das duas nações ibéricas, pareciam chamar ao heroísmo os corações idealistas. As esquadras portuguesas, marcadas com a Cruz de Cristo, singravam continuamente o “Mar Oceano”, agora transformado em estrada de sol e de espuma. E os habitantes do Brasil viam, com freqüência, batinas e hábitos variegados desembarcando das naus que lançavam âncoras na Baía de Salvador, na Capitania de Pernambuco ou nas enseadas acolhedoras de São Vicente.

Porém, em breve, a dura realidade da nova evangelização apareceu em toda a sua crueza. A conversão dos indígenas estava longe de ser tarefa sossegada e não se vislumbravam esperanças de resultados duradouros para aquela geração de catecúmenos. O canibalismo, prática arraigada desde tempos imemoriais, resistia com feroz tenacidade às exortações dos pregadores e às ameaças dos governantes, inclusive entre os já batizados: tamoios, tapuias e tupinambás ainda se entre-devoravam em indescritíveis orgias, dignas do pior dos pesadelos. E o exemplo de vida dos colonizadores leigos, em meio àquele ambiente tropical e exuberante, com freqüência deixava a desejar… O desânimo começava a ganhar terreno nas almas dos missionários e os braços cansados muitas vezes lhes pendiam ao longo do corpo.

Era necessário o aparecimento de apóstolos da têmpera de um São Paulo! Homens incendiados pelas chamas do Espírito Santo, que não recuassem diante das maiores decepções ou derrotas. Trabalhadores e organizadores incansáveis, cientes da grandeza do plano providencial que realizavam, mas dispostos a entregar a tocha do fogo sagrado para as seguintes gerações, fechando os olhos para a vida sem verem realizados os seus desígnios mais santos.

Pois bem, esses varões realmente apareceram, e a eles o Brasil votará sempre uma gratidão enternecida, pela titânica empresa que assumiram sem hesitações, com o sacrifício integral de suas existências. Faziam eles parte de uma instituição recém-fundada por um homem verdadeiramente inspirado: a Companhia de Jesus. E os nomes de Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, entre outros, permanecerão para sempre no firmamento da História como os grandes impulsionadores e benfeitores da Terra de Santa Cruz.

Onda de conversões

Agitada e dilacerada pelas guerras de Religião, a Europa via as falanges de Inácio de Loyola multiplicarem-se rapidamente, de modo quase miraculoso. A passagem desses austeros pregadores desencadeava verdadeiras ondas de conversão e de reforma de vida, em ambientes muitas vezes dominados pela euforia renascentista da idolatria do prazer. As multidões se apinhavam nas igrejas e, à palavra dos discípulos do convertido de Manresa, as lágrimas escorriam pelas faces, as mãos golpeavam o peito e os bons propósitos floresciam com abundância. Em casos não raros, o colorido traje de corte quinhentista era definitivamente abandonado em prol da batina preta do noviço jesuíta. Assim, em 1547, um português de nobre linhagem, tocado a fundo pela pregação do padre Francisco Estrada, decidiu abandonar a vida mundana e ingressar nas fileiras da Companhia. Chamava-se Inácio de Azevedo.

Um sacerdote jesuíta

Nascido em 1526, a pouca distância do Porto, era ele filho de Dom Manuel de Azevedo e Dona Francisca de Abreu. Pouco conhecemos da sua infância, mas sabe-se que na mocidade serviu como pajem na corte do Rei Dom João III. A sua mudança de vida foi súbita e surpreendente: aconselhado por um amigo, assistiu às preleções do famoso jesuíta espanhol padre Francisco Estrada, em passagem pelo Porto, e imediatamente o desejo de tornar-se religioso aflorou em sua alma como decisão irrevogável. Apenas hesitou um tanto sobre a escolha, sentindo-se inicialmente levado a integrar a Ordem dos Dominicanos, “pela devoção que eles tinham a Nossa Senhora” 1, mas, após uma conversa com o padre Estrada, o jovem fidalgo não teve mais dúvidas: seria filho de Santo Inácio.

Em 1548, vemo-lo dedicando-se aos estudos na casa jesuíta de Coimbra, onde se destacava pela austeridade das penitências diárias e pelo empenho em exercer as funções mais humilhantes. Não era tido como pregador eloqüente, nem brilhava pelos dotes da oratória, mas mostrava-se incomparável na arte da conversa, a qual seria sempre “a sua grande arma”.2

Recebeu as sagradas Ordens em Braga, no ano de 1553, e assumiu o reitorado do novo colégio de Santo Antão de Lisboa, um dos primeiros estabelecimentos de ensino da Companhia, obra do famoso padre Jerônimo Nadal. Em seu novo ofício, demonstrou dedicação sem limites, encontrando ainda tempo para visitar os presos, leprosos e enfermos da cidade. Poucos anos depois, teve de exercer as funções de vice-provincial da Companhia em Portugal, fazendo-se conhecer pela sua caridade heróica junto às vítimas da terrível peste que assolara algumas cidades do reino e adquiriu então grande fama de apóstolo, médico e consolador junto à população necessitada.

Sua fidelidade ao Fundador refletia-se nas muitas cartas que escreveu. Nelas pedia insistentemente ao Geral que enviasse a Portugal um Visitador “segundo o padre Inácio” 3, para que tudo ficasse inteiramente de seu agrado. Em 1559, ao ser nomeado reitor do novo colégio jesuíta de Braga, a sua primeira preocupação foi preparar a dependência mais digna da casa para servir de capela do Santíssimo Sacramento, enquanto ele se hospedava em local incômodo e frio. Oito anos depois, em Coimbra, o padre Azevedo realizou afinal a profissão solene, nas mãos do Provincial Diogo Mirão.

Brasil: o grande sonho

Em meio à incessante ação apostólica, inúmeras vezes pediu ele ao Geral a graça de ser enviado às terras mais longínquas, onde a presença dos filhos de Inácio de Loyola se fazia mais necessária. O Brasil exercia sobre ele um misterioso atrativo, e o terceiro Geral da Companhia, Francisco de Borja, compreendeu o apelo à missão que fazia vibrar o coração desse seu súdito, a ponto de mencionar afetuosamente “o seu Brasil” 4 nas cartas dirigidas ao jesuíta lusitano. Em fevereiro de 1567, Inácio de Azevedo era nomeado Visitador da Terra de Santa Cruz. Assim, na armada que partia em maio do mesmo ano, viajou, radiante de júbilo, um novo missionário da Companhia.

Durante dois anos o Visitador palmilhou as vastidões do Brasil. Percorrendo todas as casas da Companhia, introduziu costumes, reavivou esperanças, ouviu queixas e sugestões, incentivou e organizou os estudos e ditou sábias regras para a perseverança daqueles que se embrenhavam pela floresta. José de Anchieta mencionou em suas cartas os enormes benefícios da visita de Azevedo 5 e, quando chegou a hora do retorno, tendo percorrido duas vezes o litoral brasileiro, todos os habitantes de Salvador compareceram à praia, “cheios de saudade e esperanças”6, celebrando-o como verdadeiro pai e suplicando-lhe insistentemente que não tardasse em regressar. Ele prometeu tudo quanto lhe pediam e rumou para Portugal, firmemente decidido a voltar ao “seu Brasil”.

Farol da Barra, Salvador, Brasil

Farol da Barra, Salvador, Brasil

A partida e a viagem

Apesar de seu empenho em retornar, ainda decorreram dois anos antes do novo embarque.  Desta vez, ele preparava uma verdadeira renovação espiritual e material da colônia. Insistindo sobre a necessidade de vocações especificamente destinadas à evangelização do Brasil, afirmava não ser preciso recrutar noviços de grande cultura, mas apenas aqueles que dessem garantias de perseverança e se esforçassem em aprender as línguas indígenas. “Com latim, tupi e virtude” 7 estariam aptos para a grande missão.

Francisco de Borja apoiou integralmente a iniciativa de Inácio e autorizou-o a recrutar voluntários em todas as casas da Companhia. O Papa São Pio V recebeu o jesuíta em audiência e concedeu-lhe substanciosos privilégios para a sua viagem, além da indulgência plenária para todos os que o acompanhassem. À passagem de Inácio se multiplicavam os candidatos a participar da epopéia, de tal modo que, às vésperas da partida, setenta valorosos jovens se reuniam sob a direção do missionário, agora nomeado Provincial do Brasil. Além de dois sacerdotes, quase todos eram irmãos ou noviços da Companhia, sendo alguns deles artesãos de diversos ofícios, como alfaiates, sapateiros, tecelões, carpinteiros, lavradores e um pastor que embarcaria com suas ovelhas.

Por fim, no dia 5 de junho de 1570, a armada de Dom Luís de Vasconcelos, novo Governador do Brasil, levantou âncora na foz do Tejo, levando o esquadrão de voluntários. O padre Inácio, com trinta e nove companheiros, viajava a bordo da nau mercante São Tiago.

Em poucos dias, aquela embarcação tornou-se cenário digno do melhor retiro inaciano. Os irmãos e noviços reuniam-se em torno do padre Inácio e passavam os dias em orações, conversas edificantes e leituras em conjunto, acompanhadas às vezes pelos belos acordes da polifonia sacra. Os próprios marinheiros, cujos costumes e linguagem não eram sempre dos mais recomendáveis, foram influenciados pelo ambiente geral e participavam alegremente de longos entretenimentos sobre as verdades da Fé. E o exame de consciência, ao pôr-do-sol, encerrava-se com o canto da Salve Rainha.

Poucos dias foram suficientes para aportar na Ilha da Madeira. Mas Dom Luís de Vasconcelos não parecia ter muita pressa em chegar ao Brasil e decidiu permanecer ali por várias semanas, motivando a impaciência do capitão da São Tiago, o qual pediu licença para navegar a sós até as Canárias. O padre Azevedo era contrário a tal temeridade e recordou aos seus súditos a possibilidade de serem atacados pelos corsários em alto-mar, deixando-lhes liberdade de escolher entre continuar na São Tiago ou aguardar junto à armada.

Um ímpeto de entusiasmo lhe respondeu: não queriam abandoná-lo! E a nau partiu sozinha, levando o seu pequeno exército de candidatos ao martírio e arribando felizmente ao pequeno porto de Terça-Corte, nas Canárias, onde foram carinhosamente recebidos e permaneceram por cinco dias, esperando bons ventos para acolher-se à cidade de Las Palmas. Tudo indicava que o padre Inácio recebera ali claros sinais do Céu sobre a sorte que os esperava, pois, a partir de então, suas palavras de encorajamento sempre versavam sobre a beleza do martírio e o serviço prestado a Deus por aqueles que entregam as suas vidas pela Fé Católica.

Entrementes, Dom Luís de Vasconcelos, ainda na Madeira, mandava as suas naus saírem precipitadamente da barra para perseguir alguns navios que despontavam ao largo. Tratava-se de Jacques Sória — corsário francês a serviço da rainha da Navarra, Joana d’Albret, e famoso por seu fanatismo anticatólico e sanguinário — que partira de La Rochelle, à caça dos jesuítas. Porém, o pirata não ousou enfrentar a esquadra portuguesa e retomou o alto-mar, aproximando-se de Las Palmas, exatamente quando os peregrinos, após deixarem Terça-Corte, avistavam o porto desejado. Foi nesse momento que o vigia da São Tiago deu o alarme: “Naus à vista!”.

O martírio

Tudo aconteceu rapidamente: enquanto os inimigos cercavam a sua presa, procurando a abordagem, os filhos de Santo Inácio reuniram-se junto ao mastro central da São Tiago, em torno do seu superior, o qual mantinha erguida uma imagem de Nossa Senhora, cópia fiel da famosa Salus Populi Romani que se venera na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Entoaram então a ladainha lauretana e ofereceram a Deus suas vidas em alta voz. O padre Azevedo designou um grupo para proclamar a Fé Católica durante a luta e socorrer os combatentes feridos, enquanto os outros permaneceriam rezando sem cessar. Ele próprio manteve-se até o fim ao pé do grande mastro, exposto ao furor da peleja. Teve início então um breve duelo de artilharia, cujo resultado era fácil de prever, dada a enorme desigualdade de forças.

O irmão Bento de Castro dirigia a oração dos noviços, mas, em certo momento, abraçou-os a todos, correu à proa onde fervia a batalha e, empunhando o crucifixo, permaneceu de pé na amurada, proclamando aos brados a sua Fé, até cair nas ondas atravessado de punhaladas. Foi o primeiro mártir.

Por fim, as embarcações do francês, apertando o cerco, despejaram a multidão dos atacantes no tombadilho da nau. As injúrias dos calvinistas contra os “papistas” eram dominadas pela voz de Inácio de Azevedo, o qual, com a imagem de Maria erguida junto ao peito, exortava os católicos a morrerem pela sua Fé e lembrava ao inimigo o risco da perdição eterna. A pequena tripulação já não conseguia conter a avalanche dos corsários, e um destes, aproximando-se afinal do padre Inácio, desferiu-lhe tremenda espadagada no crânio, mas o mártir, sem recuar um passo e recebendo novas estocadas, proclamou ao cair: “Todos me sejam testemunhas de que morro pela Fé Católica e pela Santa Igreja Romana!”.8

O padre Francisco Álvares ministrou-lhe a última absolvição e então os irmãos e noviços acorreram, debruçando-se sobre o pai querido e abraçando-o entre lágrimas, enquanto ele os animava: “Filhos, não temais! Eu vou adiante, aparelhar-vos as moradas”.9

O capitão da São Tiago caiu varado de cutiladas e assim os piratas dominaram inteiramente o tombadilho, atirando-se ferozmente contra os religiosos e fazendo entre eles horrível chacina. O irmão Manuel Álvares, que em Portugal recebera a revelação do seu próprio martírio, permaneceu rufando um tambor em meio ao combate e bradando aos inimigos tudo quanto pensava sobre a sua impiedade. Teve seus membros quebrados às coronhadas, sem soltar um gemido. O corpo do padre Azevedo, com os braços em cruz, também foi repousar no mar, sob o olhar dos seus súditos. E o noviço Francisco de Magalhães, de vinte anos, ostentava na face, com ufania, o sangue do seu santo superior, a quem abraçara enternecido. O irmão Aleixo Delgado, pequeno e franzino, teve a sua cabeça apertada com tanta força, que o sangue lhe jorrava abundante pelo nariz enquanto dava grandes risadas, feliz por receber os primeiros golpes que o levariam ao martírio.

Jacques Sória ordenou peremptoriamente que todos os jesuítas deveriam ser mortos, com exceção do cozinheiro, João Sanches, o qual seria reservado para prestar seus serviços como escravo. E assim foi consumada aquela jornada: atravessados por punhais ou talhados por espadas, os últimos filhos de Santo Inácio foram arremessados ao oceano sem piedade. O  sobrinho do capitão, apelidado de “São Joaninho”, tinha recebido do padre Azevedo a promessa de ser admitido na Companhia antes de aportar no Brasil. Ofereceu-se então para morrer em lugar do cozinheiro e completou assim o número de quarenta. Por longo tempo se ouviram as preces dos mártires sobre as águas tranqüilas, enquanto os discretos esplendores do entardecer iluminavam o corpo do padre Inácio, ainda flutuando com os braços em cruz junto ao sagrado quadro de Nossa Senhora. E na longínqua Espanha, a grande Santa Teresa de Ávila recebia naquele momento a visão de tudo quanto acontecera na nau São Tiago e do triunfo daqueles gloriosos mártires.10

A doação total

Misteriosos são os desígnios de Deus em relação às almas. Quantos, ao longo da História da Igreja, sentiram-se chamados pela Divina Providência a determinadas missões e, depois de se devotarem a elas com todo empenho, morreram sem verem cumpridos os seus nobres anseios! Entretanto, enganar-se-ia quem concluísse haver nesses casos um equívoco da parte daqueles que apenas obtiveram como fruto aparente, a decepção e o fracasso. Quando Deus acende algum desejo no coração de um apóstolo, mais do que a realização da obra iniciada, deseja Ele a oferenda generosa de uma alma que decidiu entregar-se sem laivos de egoísmo ou auto-realização. Em uma palavra, Ele não quer tanto aquilo, mas aquele.

Inácio de Azevedo, com a sua jovem falange, alimentava ardentemente o desejo de ver um Brasil florescente de virtudes, cuja nova civilização fosse toda alicerçada na Fé Católica. Entretanto, em meio àquela navegação rumo à realização do seu ideal, Deus o chamou, como se lhe dissesse: “Inácio, não verás mais o Brasil. Vem a Mim!” E ele soube responder ao convite com inteira paz de alma. De Inácio, Deus queria, sobretudo, o próprio Inácio, mais do que o Brasil.

Mártires brasileiros

E quem sabe se, para a grandeza deste País, Deus queria daqueles quarenta heróis a conquista misteriosa e sobrenatural de grandes glórias num porvir que eles nem sequer suspeitavam? Ao contemplar as praias do nosso litoral, onde as ondas afáveis e graciosas parecem oscular a areia e retirar-se com saudades, somos levados a pensar naquele esquadrão de jovens mártires. E, cheios de emoção, ao lembrar que essa espuma luminosa vem irrigada por sangue tão fecundo, gota d’água no cálice do Preciosíssimo Sangue do Redentor, cantamos com a sagrada Liturgia: “Alegram-se nos Céus as almas dos Santos que seguiram os passos de Cristo e que, por seu amor, derramaram o seu sangue. Com Ele exultam eternamente!” ²

1 M. Gonçalves da Costa, Inácio de Azevedo, o homem e sua época, Livraria Cruz, Braga, 1957, p. 42.

2 Idem, p. 57.

3 Idem, p. 117.

4 Idem, p. 227.

5 Cf. Cartas do Padre José de Anchieta in Cartas Jesuíticas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1933, p. 257.

6 M. Gonçalves da Costa, Inácio de Azevedo, o homem e sua época, Livraria Cruz, Braga, 1957, p. 278.

7 Idem, p. 290.

8 Idem, p. 415.

9 Idem, p. 416.

10 Cf. Rocha Pita, História da América Latina Portuguesa, Itatiaia, Belo Horizonte, 1976, p. 90.

jul 152011
 

A misteriosa origem da vida consagrada

Marcos Eduardo Melo dos Santos

Seriam os religiosos herdeiros dos profetas do Antigo Testamento? Seriam eles continuadores da missão de Santo Elias? Não será Santo Elias o fundador da Vida Consagrada?

O profetismo se sintetiza na emblemática figura de Santo Elias. Um homem capaz de dominar as chuvas, de ressuscitar mortos, de produzir milagrosamente durante três anos trigo e azeite, de fazer chover fogo do céu, etc.

Elias é o profeta. De tal maneira ele sintetiza a missão profética que foi escolhido pelo Senhor Transfigurado para representar o profetismo no monte Tabor.

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A palavra profeta deriva do grego, πρoφήτης, prophétes. É aplicada uma à pessoa imbuída de inspiração divina, capaz de pronunciar um oráculo, ou ainda, a um indivíduo apto a predizer acontecimentos futuros. (ROSSANO; RAVASI; GIRLANDA, 2005).

O Antigo Testamento, denomina-os primeiramente como videntes (I Sm 9,9). Ao profeta, Deus não apenas revelava os acontecimentos futuros, por meios de sonhos, visões ou aparições, mas o constituia como conselheiro e instrutor acerca da Lei de Deus. Gozava assim de enorme influência sobre as consciências de Israel.

A expressão “filhos dos profetas”, designava todos aqueles que se tornavam discípulos ou auxiliares dos profetas, os quais se constituiam em verdadeira comunidades (CANALS CASAS, 1994, p. 31).

De acordo com o texto bíblico, tais conglomerados surgiram em Israel já na época de Samuel (Cf. 1Sm 10,5-6.10-13; 19,20-24), seu apogeu se deu nos tempos de Santo Elias e Santo Eliseu (1 Rs 18,4.13.19-40; 2 Rs 2,13-16; 4,1.38-44; 6,1-7; 9,1); e parecem ter desaparecido na época do exílio (Zc 7,3; Ne 6,10-14). Seu carisma primava pelo caráter cultual, sua vida está vinculada aos santuários da época, como Ramá, Betel, Jericó e o Monte Carmelo (CANALS CASAS, 1994, p. 31).

Os filhos dos profetas viviam sobretudo no seguimento do Profeta, o qual portava uma graça ou um carisma semelhante aos fundadores na Nova Lei. Do profeta os discípulos auriam a doutrina, o espírito e o modo de viver.

Santo Elias é o herdeiro das antigas comunidades proféticas pré-exílicas. É considerado pelos Padres da Igreja como “fundador da vida consagrada” (SMET, 1987, p. 12). Santo Atanásio declara que “a vida ascética tem um modelo no qual pode refletir-se, como se fosse um espelho: o exemplo do grande Santo Elias” (ATHANASIUS. Vita Antonii, 7, PG, 854). Por sua vez, São Jerônimo não hesita em afirmar:

Cada modo de vida tem seu guia. Os bispos e sacerdotes têm aos apóstolos e aos homens apostólicos como modelos, aos que devem imitar para poder assim participar da dignidade deles. Nós esforçamo-nos em imitar a nossos Paulos, Antonios, Julianos, Macarios, e – se temos de recorrer à autoridade das Escrituras – nosso chefe é Elias, nosso é Eliseu, nossos são os filhos dos Profetas, que viveram nos campos e lugares solitários e plantam suas tendas nas margens do Jordão (SÃO JERÔNIMO. Epistula 58 ad Paulinum. PL 22, 583).

Outras comunidades religiosas se autodenominam herdeiros espirituais do carisma eliático, como os Hassidim e os Essênios, assim como no cristianismo com a ordem carmelitana.

Tal como os levitas, Santo Elias estava voltado ao serviço exclusivo de Deus; à repulsa de qualquer culto idolátrico; a seguir a voz de Deus conforme as inspirações e visões. O filhos dos profetas, por sua vez, deveriam seguir o profeta, servindo-o e obedecendo-o, hariundo no convívio com Mestre seu espírito e doutrina.

Jonadabe e os Recabitas

Segundo o livro de Jeremias (35,1ss), os recabitas eram descendentes de Jonadabe, filho de Recab, o queneu, o qual viveu por volta do nono século antes de Cristo. Ensinou a seus descendentes a se absterem de vinho, bem como não edificarem casas em cidades e praticarem a agricultura (COLOMBÁS, 2004, p. 28).

Os recabitas formavam um autêntico clã, algo semelhante a uma ordem religiosa nômade (cf. 2Rs10,15-33). Não lhes era próprio habitar em cidades, mas sim em tendas no deserto. Só se retiraram à Jerusalém por ocasião das invasões sírias e caldéias. Até a época da narrativa de Jeremias permaneciam fieis ao estilo de vida implantado pelo fundador Jonadabe. Em 250 anos de fidelidade os recabitas se constituíram numa comunidade ascética cuja existência e o mérito são referidos pelo profeta Jeremias (Cf. Jr 34,6-7ss; 2Rs 10,15-17; CANALS CASAS, 1994, p. 33). Na teologia dos fundadores, os recabitas são exemplo de como o carisma do fundador dado aos discípulos é dotado de uma potência capaz de transpor os séculos mesmo em épocas tão antigas.

Assideus

O nome assideu deriva do hebraico hassidim, e significa misericordioso (Sl 30:5 [A. V. 4], 31:24 [23], 37:28). No entanto, no primeiro livro dos Macabeus (1Mc 2,29.42-43), o termo se refere a um determinado grupo de pessoas no sentido de mártires. Os assideus caracterizam-se por um profundo amor a lei; pela busca da perfeição; como pessoas generosas no perdão, mas intransigentes diante da transgressão da lei; e que durante certas festas judaicas costumavam recolher-se por determinado tempo à oração e à abstinência (CANALS CASAS, 1994, p. 33).

Em épocas ulteriores, os ‘Hassidim são contados como um ideal do judaísmo, tornando-se inclusive um título de respeito no trato corrente. Devido a sua integridade gozaram de grande influência sobre o povo judeu, tornando-se símbolo da independência de Israel contra o domínio estrangeiro (2 Mac 16,6).

Com a consolidação do poderio romano na Palestina é provável que se tenham tornado uma associação de doutores da lei ou um partido político-religoso como os saduceus, mas para muitos autores a origem e o fim dos assideus permanecem ainda obscura. Há ainda outra corrente de exegetas e historiadores que os identificam com os essênios devido à aproximação linguística do radical das duas palavras tanto na língua hebraica como na grega. Ambos termos significam “piedosos” ou “santos”.

Essênios e Qumrã

Os Essênios (Issi’im) constituíam um grupo judaico ascético que teve existência entre 150 a.C. e 70 d.C. São comumente relacionados com outros grupos religioso-políticos, como os saduceus (COLOMBÁS, 2004, p. 21).

O nome essênio provém do termo sírio asaya, e do aramaico essaya ou essenoí, todos com o significado de médico, no grego therapeutés, e, finalmente, por esseni no latim. Não se sabe ao certo donde deriva este nome. Baseado em Filón de Alexandria e Flávio Josefo é provável que o vocábulo derive de hesén-hasaya, que significa “santo-venerável”. Se autodenominavam como “filhos do novo pacto”. São considerados herdeiros das comunidades proféticas e de Santo Elias (ROSSANO; RAVASI; GIRLANDA, 2005).

Na Bíblia não há qualquer menção sobre eles. Tudo que se sabe a seu respeito colhe-se do historiador judeu Flávio Josefo e do filósofo, também judeu, Filón de Alexandria. Outra fonte para o conhecimento da vida desta comunidade religiosa são os manuscritos de Qumrã. Todavia, os especialistas constatam que os essênios de Qumrã não são exatamente os mesmos daqueles descritos por Josefo e Filón, devido o fato evidente de que os dois escritores judeus possam idealizá-los em suas descrições. Entretanto, os essênios são de fato o grupo que oferece mais elementos da vida ascética veterotestamentária (SCHÜRER, 1985).

A História desde grupo religoso parece iniciar-se durante o domínio da Dinastia Hasmonéia, quando foram perseguidos e por esta razão refugiados nos desertos, vivendo em comunidades sob o estrito cumprimento da lei. Este isolamento os fez diferenciar-se do judaísmo comum que aliás estava corroído pela helenização. Acredita-se que a crise que desencadeou esse isolamento do judaísmo ocorreu quando os príncipes Macabeus, Jonathan e Simão, usurparam o ofício do Sumo Sacerdote dando-o a um ramo secundário da tribo de Levi, consternando os judeus conservadores. Alguns, entre os quais os essênios, não puderam tolerar a situação e denunciaram a Roma os novos governantes. Josefo refere, na ocasião, a existência de cerca de 4000 essênios, espalhados por aldeias e povoações rurais.

Gianfranco Ravasi afirma que o esenismo era “a forma mais original do judaismo desta época da História de Israel” (ROSSANO; RAVASI; GIRLANDA, 2005). Por tal motivo, os autores judeus demonstram a admiração ao seu estilo de vida como se evidencia no relato de Plinio, o Velho:

Ao oeste (do mar Morto) os essênios ocupam alguns lugares da costa, embora sejam agrestes. É um povo único em seu gênero e digno de admiração no mundo inteiro acima de todos os demais: não se casam, pois renunciam inteiramente o amor conjugal, não possuem dinheiro, são amigos das palmeiras. A cada dia crescem em igual número, graças à multidão de novos aderentes. Com efeito, acodem em grande número aqueles que, cansados das vicissitudes da fortuna, orientam a vida adaptando-a a sues costumes. Assim, durante séculos, ainda que pareça inacreditável, há um povo eterno do qual não nasce ninguém (Plinio el Viejo, Natur.histr. V, 15, 73, tradução minha).

Dentre as comunidades, tornou-se conhecida a de Qumran, pelos manuscritos em pergaminhos que levam seu nome. Os manuscritos do Mar Morto parecem ser anteriores a 68 d.C., os quais oferecem informações de diversos gêneros, com especial enfoque na vida religiosa especialmente nos documentos denominados como Regra da Comunidade (= 1QS), Regra da Guerra (= 1QM) ou ainda nos Hinos (= 1QH). Neles se verifica o gênero de vida, singularmente elevado e distinto desta comunidade (ROSSANO; RAVASI; GIRLANDA, 2005).

Os essênios eram uma verdadeira comunidade monástica. Dividiam-se em grupos de 12 com um encarregado da disciplina denominado “mestre da justiça”. A jornada se iniciava ao amanhecer com uma oração voltada ao oriente e se dividia entre trabalho manual – pois não possuiam amos nem escravos – e atividades espirituais, como orações, leituras e comentários da lei e de outros textos considerados sagrados; pela noite, divididos por turnos vigiavam em oração e estudo; vestiam-se sempre de branco; acreditavam em milagres e bençãos com as mãos, por esta razão eram chamados de terapeutas; sem propriedade privada partilhavam tudo em comum; vegetarianos e celibatários, aceitavam por períodos restritos o ingresso de pessoas casadas; cultivavam a higiene, tomando banhos antes das refeições sempre sujeitas a rígidas regras de purificação; primavam pela vida comunitária com a obrigação de comer, orar e deliberar os rumos da comunidade em conjunto; eram chamados de nazarenos por causa do voto nazarita; sua hierarquia se estabelecia de acordo com graus de pureza espiritual dos irmãos; suas doutrinas eram secretas; e nenhum estranho podia se unir a eles sem um complexo e cuidadoso processo de admissão. Um dos manuscritos apresenta a seguinte recomendação: “se for capaz de disciplina, o introduzirás no pacto…” (1QS VI, 14) (ROSSANO; RAVASI; GIRLANDA, 2005).

Seriam o carmelitas os diretos herdeiros de Santo Elias e da misteriosa comunidade de Qumrã? Este é mais um dos enigmas da História ainda não comprovados por historiadores e exegetas. No entanto, como afirmava São Jerônimo, Santo Elias pode ser considerado ainda hoje a remota origem e o perfeito modelo da vida consagrada.

Tópicos relacionados

  • Carmelitas ou Ordem do Carmo
  • História do Escapulário do Carmo
  • Bibliografia

    COLOMBÁS, Garcia M. El Monacato Primitivo. 2 ed. Madrid: Bac, 2004. 785 p.

    COLOMBÁS et alia. San Bento, su vida y su regla. Madrid: Bac, 1954. 730 p.

    ROSSANO, P; RAVASI, G; GIRLANDA, A. Nuevo diccionario de Teología Bíblica. 2. ed.San Pablo. Centro Iberoamericano de Editores Paulinos (CIDEP). In Biblia Clerus. CD-ROM. Congregatio pro clericis. 2005.

    SASTRE SANTOS, Eutimio. La vita Religiosa nella storia della Chiesa e della società. Milano: Ancora, 1997. 1061 p.

    SCHÜRER, Emil. Historia del pueble judio en tiempos de Jesús. T. II, 1985.

    SMET, Joaquim. Los carmelitas. História de La Orden Del Carmen. T. 1. Madrid: Bac, 1987. 400 p.

    jul 092011
     

    São Bento de Núrsia

    São Bento de Núrsia (480-547) fundador da Ordem dos Beneditinos, hoje uma das maiores ordens monásticas do mundo, foi o autor “Regra de São Bento”, um dos mais importantes documentos utilizados como regulamento da vida monástica, fonte de inspiração de outras comunidades religiosas ao longo da História (LLORCA, Bernardino et al. Historia de la Iglesia Católica. 7 ed. Madrid: BAC, 2009. p. 615; COLOMBÁS et alia. San Bento, su vida y su regla. Madrid: Bac, 1954. p. 124).

    Sua Regula Monasteriorum, escrita em latim, conta com 73 capítulos e um prólogo, foi retomada por São Bento de Aniane (século IX) antes das invasões normandas; que a estudou e codificou, dando origem a sua expansão por toda Europa carolíngia, pois a regra de São Bento é uma normatização da vida monástica mais completa e abrandente que as anteriores (ROPS, Daniel. A Igreja dos Tempos Bárbaros. Trad. Emérico da Gama. São Paulo: Quadrante, 1991).

    Através da Ordem de Cluny e da centralização de todos os mosteiros que utilizavam a Regula, o modelo de São Bento foi adquirindo grande importância na vida religiosa européia durante a alta Idade Média. Como será considerado, seu exemplo fez surgiu nos séculos subsequentes diversas reformas, as quais buscavam recuperar um regime beneditino mais de acordo com a regra primitiva. Outras reformas (como a camaldulense, a olivetana ou a silvestriana), buscaram também dar ênfase a diferentes aspectos da Regra de São Bento (SASTRE SANTOS, Eutimio. La vita Religiosa nella storia della Chiesa e della società. Milano: Ancora, 1997. p. 140).

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    Apesar dos diferentes momentos históricos, nos quais a disciplina, as perseguições ou as agitações políticas causaram uma certa decadência da prática da Regra de São Bento, os mosteiros beneditinos conseguiram manter, durante todos os tempos, um grande número de religiosos e religiosas. Atualmente, a ordem posssui cerca de 700 mosteiros masculinos e 900 mosteiros e casas religiosas femininas, espalhados pelos cinco continentes.

    Ao descrever na figura do abade, o segundo capítulo da regula parece aludir a própria missão dos fundadores, que “faz as vezes do Cristo, pois é chamado pelo mesmo cognome que Este, no dizer do Apóstolo” (cf. Rm 8,15; Gal 4,6; SÃO BENTO DE NÚRCIA. Regra de São Bento. Bilingue. Trad. João ENOUT. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1990. p. 21). Em São Bento verifica-se ademais a diferença que há entre o fundador e o patriarca. Este último é uma espécie de ilustre fundador, a cuja família vê-se agregar congregações diversas ao longo dos séculos, como ocorreu posteriormente com São Francisco e São Domingos. Estes fundadores-patriarcas não fundaram todas numerosas congregações de votos simples que portam seu nome, mas essas instituições se nutrem de seu espírito e carisma.

    Para Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias (2008), “o essencial da obra de Bento de Núrsia consistiu em fermentar uma sociedade cindida por revoltas, crises e guerras, transformando-a, aos poucos, na era ‘em que a filosofia do Evangelho governou os Estados’”[1]. Para Daniel Rops, a obra de São Bento realizou na prática sobre todo o mundo medieval o pensamento e o objetivo de Santo Agostinho (ROPS, 1991). Llorca afirma que,

    “No grande eclipse da civilização antiga que sobreveio no tempo das invasões, apenas permaneceu outra luz, excetuando o florescente império visigótico, que aquela que teve de se refugiar na brilhante constelação de mosteiros espalhados pela França e os países setentrionais, especialmente na remota Irlanda. Os monges foram os transmissores do saber antigo para os séculos futuros” (LLORCA ET AL., 2003, v.2, p. 254, tradução minha).

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    Para baixar a Regra de São Bento – Download gratuito

    História de São Bento de Núrsia – O varão do qual nasceu uma civilização (Português)

    Historia de San Benito, abad y patriarca de las religiones monacales de occidente (Español)


    [1] Cf. Leão XIII, Immortale Dei, IV, 28. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em: 18 mar. 2008.